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quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Relatório dois

Universidade Federal de Alagoas - UFAL
Faculdade de Letras - FALE
Estágio supervisionado de língua portuguesa e literatura
Professora: Rosângela Oliveira Cruz Pimenta
Melquezedeque Farias Rosa











Relatório








Maceió, 28 de Novembro de 2011.
           
“Há muito suspeitei o velho em mim.
Ainda criança, já me atormentava.
Hoje estou só. Nenhum menino salta
de minha vida, para restaurá-la”.
__Carlos Drummond de Andrade

            Os cursos de formação de professores respiram a pulverulência de uma crise antiga: a crise dos valores (morais, históricos, sociais, políticos, científicos, etc.) postos tradicionalmente. Instaurada em meados do século XIX, tal crise atravessou todo século XX e ainda se alonga por esse século em que estamos. Agora conotada como uma crise final de derrubada de valores sedimentados com muito esmero por quem se agarra a velhos hábitos à mesma medida em que se reveste de novos. Isso pode ser sentido nos momentos em que são exigidos os relatórios de estágios supervisionados como pré-requisito de avaliação da formação dos futuros professores. Nesses momentos, são apresentadas diretrizes para que os estagiários cumpram determinadas ações, sendo que, centralmente, a prioridade se constitui em torno de observação, regência e apresentação de um diário e/ou relatório final.
            A disciplina: estágio supervisionado tem duas fases: a primeira como parte meramente teórica, em que são discutidas, trabalhadas e avaliadas preparatoriamente os objetivos gerais e específicos enquanto metas a serem atingidas na segunda fase, em que ocorrerá o estágio propriamente dito, quando os estagiários se dirigirão a uma escola para, num primeiro momento, observar as práticas de um professor por algumas aulas, e num segundo momento reger algumas aulas na turma do professor observado. Após esses dois momentos, os estagiários escrevem um diário ou relatório final sobre suas experiências como observadores e suas experiências como regentes. Nesse diário ou relatório, os estagiários confrontam as práticas do professor observado com as orientações teóricas da fase preparatória do estágio e com suas práticas como regentes. Parece perfeito e saudável. Mas só parece.
            Notavelmente, esse modelo de estágio traz no útero sua própria crise, crise respaldada sócio-historicamente no paradoxo apontado no primeiro parágrafo desse trabalho__ apego a velhos hábitos e revestimento de novos. Ele traz da tradição mais recôndita a frieza da observação positivista e quantificadora, recorte de tecido morto, trabalho de legista. Reproduz a gume afiado antigas dicotomias__ teoria X prática, sujeito X objeto, observador X observado; eu X outro__ revestida do discurso da novidade representada por concepções de ensino/aprendizagem da moda, que têm andado por ai na crista das ondas. Tais concepções, por hora valorizadas, apresentam um paradigma que se opõe àqueles velhos hábitos dicotômicos; elas unem e reúnem os elementos de interação do processo de observação.
Indubitavelmente não estou falando aqui de uma desconstrução da tradição, mas de uma reconstrução dela e permanentemente por uma cosmovisão que permite não ignorar o passado na mesma proporção em que se considera o presente rumo ao devir. Estou falando aqui que a concepção de ensino/aprendizagem que vem ganhando espaço nos cursos de formação de professores, especificamente nas disciplinas de estágio, tem seguido um caminho dialético entre os elementos participantes envolvidos no processo observação. Daí, a incompatibilidade entre o que se propõe e o que vejo sendo feito; entre as velhas práticas dicotômicas e as novas de caráter binominal ou interativas. 
O que fazem os estagiários de um modo geral? Vão até a escola, localiza pontos de encontro e desencontro entre as práticas do professor observado e as orientações teóricas por eles levadas e disso faz um registro em seu relatório. Tudo friamente. Sem envolvimento. Sem composição de idéias com o professor observado. Tudo friamente. Eles ainda preparam suas aulas de regência muito caprichosamente que geralmente costumam ser relatadas como grande experiência em detrimento do foi observado nas práticas do professor. Tudo friamente. Sem parceria com o professor, este é o outro, é objeto de observação e só interessa ao fio afiadíssimo da caneta que traduzirá em tinta gasta nas folhas do relatório o quanto aquele professor e suas práticas são obsoletos. Tudo friamente. Ai que frio! Ai que frio!  
Por essa razão, decidi seguir outro rumo em meu estágio. Para além da observação cemiterial, sem calor e vida, sem pulso e palpitações, que tenho visto. Para o meu relatório, com a finalidade de mais vida e sensibilidade trago até a poesia de Dummond como epígrafe para lembrar que sou mamífero de sangue quente. Não desejo e até me recuso a fazer de meu relatório um mero espaço de aplicação teórica. Não desejo e me recuso a simplesmente compreender uma forma (ou será uma fôrma?) para ganhar um C de sete e ser aprovado. “Tô nem ai pras normas, danem-se elas!” Talvez eu nem escreva um relatório, mas uma mistura confusa de mim-mesmo que se aflora, uma mistura de gêneros discursivos que se confundem em mim, em minha necessidade de escrever com o coração mais que com o cérebro, de escrever com a presença de todos os meus cinco sentidos, de escrever com todos os órgãos do corpo, com todas as partes de mim, com o todo de mim. Há algumas coisas no todo que cada parte não conta. Isoladamente nada existe.
Minha experiência de estágio ocorreu na Escola Estadual Onélia Campelo, localizada no bairro Santos Dumont, na cidade de Maceió sob orientação da professora Maria Rosângela Oliveira Cruz Pimenta. A Onélia é uma escola de bom porte estrutural, primeiro andar, salas espaçosas, sala de vídeo e sala informática, embora apresente sinais de deterioração, infiltração, de obra mal feita ou por fazer aqui e acolá. A escola apresenta o humor típico da periferia; num olhar ela passa a imagem de sombra, de tristeza, de descuido, noutro olhar de abrigo, de alegria, de cuidado. A frente do Onélia  com sua árvore que serve de quebra-luz e também guardiã, é uma síntese da imagem passada pela escola:, uma metáfora verde e viva do todo envolvente; um verde vivo apesar de amarelado. No refeitório é servido merenda de boa qualidade todos os dias, pelo menos foi assim enquanto estive lá estagiando, sempre antes das aulas começarem para que alunos que trabalhem durante o dia façam sua refeição lá mesmo na escola. Barriga cheia rima com paz de espírito. O estômago é o espelho da consciência.
 A turma na qual estagiei foi a do nono ano noturno, com 37 alunos e fluxo diário de 29 em média. Era uma turma mista envolvendo pessoas cuja faixa etária ia de 18 anos acima, alguns inclusive aparentando 40 ou 50 anos; a maioria mulheres. Animados entre eles, desconfiados entre mim. O olhar deles denunciava coisas que eu compreendia sem entender. As marcas do rosto de alguns pareciam traduzidas em meu coração. E eu imaginava isso só porque queria enxergá-los. Grande parte de minhas imaginações talvez não tenham passado de delírios ou devaneios de quem se ocupa só em observar a vida sem se envolver nela. Alguns pareciam infelizes, cansados ou aborrecidos, outros o oposto e outros, sei lá.    
 A proposta inicial, como já ficou dito acima, era que assistisse a um conjunto de aulas (observação) e em seguida preparasse outro conjunto de aulas para regência. Seriam dois momentos, portanto. No final, a experiência vivida em ambos os momentos seriam registrada no relatório. Mas como também ficou dito e problematizado acima, decidi seguir outro rumo. 
O primeiro passo que tomei em minha experiência de estágio foi inicialmente ignorar toda discussão teórica apriorística. Busquei o impossível: tirar todas as roupas teóricas que me revestiam. Pretendi entrar desnudo. Não consegui. O passado é um encosto encarnado em nós. Mesmo assim teimei em minha ingenuidade, sacrificando minha própria concepção marxiana de mundo. Entrei como mero observador e fiquei duas aulas nessa condição tão simples.
Nessas duas aulas, que se deram nos dias 27 e 28 de outubro de 2011, o professor observado, ou reveladamente, o professor Gilvan Maurício, que aqui tem nome, sobrenome, cor e origem e etc., estava terminando um trabalho que me chamou bastante atenção pela intenção mais do que pela desenvoltura dos participantes. Entendendo aqui participantes como o próprio professor  Gilvan e seus alunos. Ele havia pedido que os alunos em grupo preparassem reportagens que seriam oralizadas em sala de aula a partir de textos informativos, textos midiáticos, textos de notícias, ou mesmo de vídeos da internet ou reportagens de telejornais ou documentários. A oralização das notícias seguiria o curso de cinco perguntas básicas: O quê? Quando? Onde? Como? Por quê?
Cada grupo preparou sua apresentação, mas todos os grupos tinham que elaborar um relatório de todas as reportagens feitas pelos demais grupos. Essa atividade valeria como avaliação considerando a soma da apresentação com a da observação e relatório. Também seria consideradas a atenção e participação de cada um para com a atividade.
Essa atividade valeria como uma fração de nota a ser somada à nota bimestral de Língua Portuguesa. Eu acompanhei observando os detalhes mais relevantes a serem observados dessa atividade. Percebi acontecimentos típicos de uma sala de aula e outros bastante atípicos. E foram os atípicos que me interessaram mais. Os típicos já me causam enfado. Afinal, já tenho dez anos de sala de aula. Por isso vou me ater ao que vi de novo, ao que aprendi de novo, ao que me surpreendeu de novo. Vou me ater apenas a um acontecimento atípico pra mim. 
No início havia grande motivação por parte de uns e de preocupação por parte de outros. E, não raro, motivação e preocupação estavam presentes nos mesmos. Houve uma menina que pediu pra apresentar três notícias e não apenas uma como estava predeterminado pelas regras, o professor permitiu duas, mas ele fez também o trabalho de oralização das reportagens que o professor pediu pra ela fazer a terceira; ela toda orgulhosa oralizou a terceira reportagem. O mais curioso é que ela apresentou três notícias bem diferentes: 1) um drama: a enchente da cidade de Branquinha; 2) uma notícia do casamento do professor Gilvan Maurício com a uma professora (detalhe esse casamento não houve, e foi tudo muito engraçado); 3) a notícia da minha presença como estagiário em sala de aula. A menina foi bastante criativa, e sua apresentação abriu caminho para a descontração.
Mais tarde, eu perguntei à menina, que tem 23 anos, porque ela quis tanto apresentar mais de uma reportagem. A resposta: “Eu sonho em ser repórter, mostrar as coisas do mundo, viajar, conhecer tudo e me divertir”. Perguntei a ela sobre as notícias tristes que ela teria que dar como repórter, resposta: “as coisas tristes eu vou denunciar, como acontece na televisão”. Sem querer me ater aos limites de sua resposta, mas apenas à questão do sonho, do desejo pessoal humano de ocupar espaços melhores na vida, posso dizer que aquela menina me comoveu. Primeiro por uma coincidência, quando eu tinha 23 anos, eu também estava na mesma série que ela, no mesmo grau de escolaridade e em condições de vida similares à dela. Eu não queria ser jornalista, mas eu queria ser escritor, de certo grau outra coincidência reservada às devidas proporções. Eu ainda não sou escritor, considerando que não tenho nenhum texto publicado, mas já tenho meus trabalhos prontos: um romance, contos, poesia, crônicas, alguns artigos em diversas áreas (educação, lingüística, literatura) sem contar minhas anotações de gaveta que não sei o que vou fazer com elas. Aquela menina, aquela menina... me fez relembrar eu por mim. E me deixou lembrando dela por ela.
Ao término do segundo dia de estágio, me bateu uma inquietação que já vinha se desenrolando desde os primeiros momentos da primeira observação. Eu queria viver o processo em andamento. Queria sair da condição de mero observado, de tão simples condição. Queria reunir o momento de observação e regência em um único momento. Queria sair da condição de legista. Minha caneta não merece ser tratada como bisturi. A sala de aula não é uma porção de carne morta a ser dissecada por um par de olhos observadores e apáticos. Sinto que estágio supervisionado tem cada vez mais se transformado em supervisão estagiária. O estagiário cada vez menos supervisionado e cada vez mais supervisor. O supervisionado é o professor observado que é tratado numa concepção mesquinha de contexto, sem nenhuma conotação mediata, apenas numa denotação imediata.
O professor observado costuma no relatório ser tratado sem referência alguma, não tem nome, não tem forma, nem cor, nem cheiro, nem origem. Ele é apenas um certo professor, o professor observado, o objeto de estudo, um óvni, não tem identidade, dizem até que a preservação do nome do professor é por uma questão de ética, para preservá-lo. Que ética é essa? Preservá-lo de que? Respostas possíveis: da má-fé, da vaidade intelectual academicista, da covardia daqueles que faz de teorias coqueluche-do-momento garras afiadas e línguas ferinas.
Fico imaginando quantos grandes motivos tenho para querer ser professor: um único. E quantos motivos pequenos tenho para não querer: incontáveis. Mas onde está o grande motivo para eu querer ser professor? Resposta: nos guetos e becos e apertos da história de minha vida. E onde estão os motivos pequenos para eu não querer ser professor? Resposta: no espaço efêmero e lustroso e largo dos cursos de formação de professores. Escolho o grande motivo e cuspo na cara dos pequenos.
Voltando da digressão dos últimos dois parágrafos, recupero o sentido só pra talvez me perder de novo daqui a pouco, talvez. Eu disse que senti o querer de fazer parte do processo de aula em andamento de forma viva. Pois, bem então apresentei uma proposta ao professor Gilvan Maurício. Para que eu e ele juntos fizéssemos parte integrante do processo. Quebraríamos a dicotomia observador X observado, estagiário X professor; quebraríamos se pudéssemos até algumas costelas da oposição professor X aluno, desimpactaríamos tal relação de poder em certa dose. O professor Gilvan Maurício confiou na proposta, e passamos a discutir e planejar o que faríamos para turma. Eu daria aula e ele daria aula, eu observaria e ele observaria. E assim se sucedeu. Éramos regentes e observadores e trocávamos idéias ao final de cada aula e já configurávamos os próximos passos, já apontávamos as próximas aulas.
Em linha geral, depois de encerradas as atividades das duas aulas em que eu fiquei apenas como observador, isto é, na terceira aula, no dia 04 de novembro, nós começamos nosso trabalho juntos. Estabelecemos que fossem quatro aulas trabalhadas envolvendo língua e literatura. O tema dessas quatro aulas seria: A poesia crítica de Gregório de Matos e os elementos de pontuação enquanto recursos de construção de sentido. Nossa pretensão era mostrar a atualidade dos temas tratados por Gregório de Matos e mostrar também como os sinais de pontuação contribuem para a construção de sentidos em alguns de seus poemas. Feito que conseguimos atingir com relativo sucesso.
Escrevi o texto num corpo só, sem particionar em introdução, blá-blá-blá e considerações finais, escrevi como quem pretende dizer tudo num escarrada única, como quem quisesse transformar os próprios sentimentos em imagens gráficas. Podia eu seguir todas as normas como sei fazer e bem. Entediado. Estou entediado. Estou sim. Estou. Sim. Nada mais a academia têm a me oferecer em nível de graduação. Já consigo ver o que não devo. Já consigo saborear o que me aflige. Passou.    









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