Por Melquezedeque Farias Rosa
O problema da produção de conhecimentos científicos, pelos menos um de seus problemas, está em que ele ocorre bastante em circuito fechado, ou seja, ele fica circunscrito ao universo acadêmico. Desse universo pouco chega até o público em geral; e quando chega, a linguagem muito especializada exige um leitor que tenha pelo menos noções básicas da questão tratada. Quando se trata de questões lingüísticas relativas ao ensino de línguas não é diferente, esse conhecimento chega ao público, por extensão, através de professores no ambiente formal escolar. Sob tal contexto aqui levemente apresentado, Antunes (2007), em sua discussão sobre gramática e ensino de línguas na escola, representa uma abertura do circuito ao trazer para a superfície social conhecimentos científicos lingüísticos numa linguagem arejadamente acessível para o publico geral.
Em tal feito, a autora apresenta uma leitura de que língua é mais que gramática visto que gramática é apenas um de seus componentes, componente este “que inclui as regras para se construir palavras e sentenças da língua” (ANTUNES, 2007, p. 40)[1]; outro componente da língua é o léxico, “que inclui o conjunto de palavras, ou, em termos mais correntes, o vocabulário da língua” (p.40). Esses dois componentes se imbricam (inter-relacionam) em processos de uso da língua nas variadas situações socialmente necessárias que conlevam para regras de textualização e normas sociais de atuação. Isso implica para o ensino de línguas, segundo a autora, três questões ordenadas da seguinte maneira: “1º) questões relativas a seu léxico; 2º) questões relativas à sua realização em textos; 3º) questões relativas às condições sociais da produção e da circulação desses textos” (p. 44). Dessa maneira, o ensino de línguas não se limitaria apenas a ensinar gramática como que essa fosse capaz de dar conta da totalidade complexa que é uma língua.
A obra está estruturada em quatorze capítulos. No primeiro, apresenta-se a gramática como uma área onde se situam ou por onde passam os conflitos da materialidade histórica. Ou seja, conflitos de natureza política, social, econômica e histórica, que envolvem questões de natureza lingüística. A elaboração de uma gramática não escapa a essas questões visto que a língua compõe rol das preocupações nacionais relativas a fronteiras geográficas e a centralização de poder.
No segundo capítulo são apresentadas cinco concepções de gramática: 1ª) Gramática enquanto conjunto de regras que definem o funcionamento de uma língua. 2ª) Gramática enquanto conjunto de normas que regulam o uso da norma culta. 3ª) Gramática enquanto perspectiva dos fatos da linguagem. 4ª) Gramática enquanto disciplina de estudo. 5ª) Gramática enquanto compêndio descritivo-normativo sobre a língua.
No terceiro capítulo a autora apresenta restritamente “os equívocos em torno das questões gramaticais e de seu ensino” (p. 36). Segundo a autora tais equívocos, historicamente herdados, se configuram em considerações de que “língua e gramática são a mesma coisa; basta saber gramática para falar, ler e escrever com sucesso; explorar nomenclaturas e classificações é estudar gramática; a norma prestigiada é a única lingüisticamente válida; toda atuação verbal tem que se pautar pela norma prestigiada; o respaldo para a aceitação de um novo padrão gramatical está prioritariamente nos manuais de gramática” (p. 37-38). Do quarto ao nono capítulos a autora vai desfazendo cada um desses equívocos apontados aqui nesse parágrafo.
No quarto capítulo, é feito a distinção entre língua e gramática desfazendo o equivoco são a mesma coisa. Segundo a autora,
[...] a língua, por ser atividade interativa, direcionada para a comunicação social, supõe outros componentes além da gramática, todos, relevantes, cada um constitutivo à sua maneira e em interação com os outros. De maneira que uma língua é uma entidade complexa, um conjunto de subsistemas que integram e se interdependem irremediavelmente. (ANTUNES, 2007, p. 40)
A gramática é apenas um dos componentes da língua cuja função condiz com a formação de palavras e frases ou sentenças. O outro componente da língua é o léxico enquanto “conjunto relativamente extenso de palavras, à disposição dos falantes, as quais constituem as unidades de base com que construímos o sentido de nossos enunciados” (p. 42). Por essa razão “língua e gramática não se equivalem e, por isso, o ensino de línguas não pode constituir-se apenas de lições de gramática” (p.44).
O quinto capítulo dedica-se à desfacção do equívoco de que: “basta saber gramática para falar, ler e escrever com sucesso” (p. 38). Pois para se produzir um gênero textual qualquer, exigem-se conhecimentos além do gramatical, conhecimentos de regras de textualização, de interação segundo o contexto envolvente no ato da produção. A interação verbal, segundo a autora, requer três tipos de conhecimento: “do real ou do mundo; das normas de textualização; das normas sociais de uso da língua. real do mundo” (p.55).
O sexto capítulo é dedicado a desfazer equívoco de que “explorar nomenclaturas e classificações é estudar gramática” (p.38). Segundo a autora, nomenclaturas e classificações “são apenas elementos da terminologia gramatical, isto é, rótulos, nomes das unidades da gramática” (p. 70). O estudo da terminologia gramatical não é o estudo das regras de funcionamento gramática da língua. É necessário ter clareza de que regras gramaticais “são as normas que especificam os usos da língua, que ditam como devem ser a constituição de suas várias unidades, em seus diferentes estratos (o fonológico, o morfossintático, o semântico, o pragmático)” (p.71). As nomenclaturas têm função metalingüística no sentido de possibilitar a comunicação na área de estudos da linguagem e não a função de desenvolver no falante a competência comunicativa oral e escrita.
O sétimo capítulo dedica-se a desfazer o equívoco de que “a norma prestigiada é a única lingüisticamente válida” (p. 38). Para tal, a autora estabelece algumas distinções e alguns conceitos. A distinção entre norma como regularidade e norma como prescrição que se desdobra na distinção entre norma lingüística como normalidade e norma lingüística como normatividade. O conceito de norma culta enquanto “um requisito lingüístico-social próprio para as situações comunicativas formais, sobretudo para aquelas atividades ligadas à escrita” (p.88). A distinção entre norma culta ideal e norma culta real. O conceito de norma-padrão enquanto “associado a um projeto da sociedade letrada de pretender garantir, para a comunidade nacional, uma certa maior uniformidade lingüística, entendida aqui como o cuidado por criar uma língua comum, estandardizada, com ênfase no geral, e não em particularidades regionais, locais ou setoriais” (p.94). Ao estabelecer essas distinções e conceitos, a autora torna visível que a língua não é homogênea em nenhuma instância, que aquilo que se entende como norma culta e norma-padrão não passa de uma convenção socio-historicamente idealizada e abstraída do mundo real. A variação lingüística é um fenômeno inalienável da realidade concreta. A heterogeneidade lingüística é fenômeno objetivamente observável. Não existe um único modo de falar uma língua. Por isso, “a “norma socialmente prestigiada não é a única norma lingüisticamente válida” (p. 100).
O oitavo capítulo é dedicado a desfazer o equívoco de que “toda atuação verbal tem que se pautar pela norma prestigiada”. Sobre isso A autora argumenta: “a ciência lingüística defende que o bom uso da língua é aquele que é adequado às condições de uso” (p. 104). Em outras palavras que o uso da língua depende da situação que lhe é própria. Em situações informais é próprio o uso informal da língua não por uma questão de normatividade, mas por uma questão de normalidade.
O nono capítulo é dedicado ao último equivoco apontado pela a autora: o de que “o respaldo para a aceitação de um novo padrão gramatical está prioritariamente nos manuais de gramática” (p. 38). Para a autora, embora os manuais possam servir de respaldo para usos variados (alternativos) da língua, é necessário também se servir dos “usos que predominam nos setores da comunicação pública e formal – como a literatura ou a imprensa – para decidir sobre as formas preferidas do usuário” (p. 115). E mais adiante, ela finaliza: “Os usos que, de fato, são reconhecidos no momento constituem um suporte legítimo para apoiar novas decisões lingüísticas. A gramática não representa, portanto, a única referência de consulta” (p.116).
No décimo capítulo a autora analisa os equívocos apontados no capítulo três, que foram discutidos do quarto ao nono capítulo, respondendo a três questões: de onde vêm os equívocos; quem os mantém; a quem ou a que servem? Segundo a autora “os equívocos em apreço resultam da falta de um conhecimento de base científica em relação a: o que é uma língua; como funciona; que componentes apresenta; que implicações sociais e políticas estão embutidas em seus usos” (p. 119-120). Esses equívocos se estabeleceram historicamente e tradicionalmente associados a concepções de língua centradas na estrutura interna, ou seja, valorizando prioritariamente os aspectos formais. Esses equívocos são mantidos ainda hoje por toda a sociedade através de suas instituições, das relações familiares, dos meios de comunicação, etc. Quanto a quem ou a que servem esses equívocos? A autora não fala explicitamente, mas é possível compreender das entrelinhas.
No décimo primeiro capítulo, a autora faz uma análise de uma atividade escolar muito aquém do texto. A atividade apresenta o equívoco de que “explorar nomenclaturas e classificações é estudar gramática”. Daí, a autora sugere outros caminhos possíveis para se trabalhar com o texto proposto pela atividade. Caminhos que consideram o texto não como mero pretexto para se verificar elementos soltos. Caminhos para uma análise real do texto.
No décimo segundo capítulo, a autora aprofunda as sugestões iniciadas no capítulo anterior. Ela sugere um programa de ensino de línguas. Um programa que nas palavras da própria autora “ajude o professor a avançar para além da gramática propriamente, já que ela é insuficiente para o exercício da atividade verbal” (...) (p. 133). Tal Programa se articula focalizado no texto, na frase e na palavra, contemplando dessa maneira não apenas a estrutura interna da língua. A autora faz com base nesse programa uma análise de um texto mostrando a viabilidade de sua proposta.
No décimo terceiro capítulo, a autora analisa como as novas concepções de língua tratada por ela ao longo da obra repercutem no ensino escolar. Ela sintetiza, com base nas novas concepções, que “o funcionamento das línguas é uma atividade interativa, entres dois ou mais interlocutores, que se realiza sob a forma de textos orais ou escritos, veiculados em diferentes suportes, com diferentes propósitos comunicativos, e em conformidade com fatores socioculturais e contextuais” (p.146). Devido a isso,
[...] a escola irá se concentrar em atividades de compreensão e análise de textos orais e escritos; de convivência com o patrimônio literário da região e do país; de reflexão e debate em torno de temas que põem em relação as variedades lingüísticas e a realidade social e política do país; de elaboração de textos orais e escritos, de diferentes registros e finalidades, com ênfase nos procedimentos de planejamentos e de revisão. (ANTUNES, 2007, p. 146)
O que propõe a autora demanda mudanças no ambiente escolar que dêem condição para sua aplicabilidade. A autora aponta as seguintes: “seriam revistos os objetivos do ensino” (p. 146); “maior destaque e funcionalidade ao espaço destinado à biblioteca, às salas de leitura, às salas de debates e de outros recursos midiáticos” (p. 152); “as questões de linguagem fariam parte do interesse e do cuidado de todos os professores da escola” (p. 153); “a distribuição das aulas havia de contemplar a articulação de vários componentes da língua” (p. 154); “a definição dos programas teria que passar por uma séria revisão” (p. 154); “o foco das aulas deixaria de ser a correção para ser o ensino, a exploração, a investigação, a pesquisa, a procura” (p. 155); “as salas de aula teriam que contar, no máximo com 30 alunos”. (p. 155)
Encerrando a obra no décimo quarto capítulo, a autora numa alusão a um poema de Drummond argumenta que “língua e gramática não são uma rima, porque não alinham pelo mesmo padrão sonoro; pelo mesmo tom. A língua tem mais acordes, tem mais vibrações; tem uma pauta maior, com mais notas, mais variações” (p. 159-160). Ou seja, a língua está muito além da gramática.
Antes de encerrar esse texto ainda se fazem necessárias algumas observações. Primeira, o objetivo da autora em escrever uma obra para o público geral foi conseguido com bastante êxito. A obra de fato não oferece grandes dificuldades para compreensão. Segunda, o assunto tratado pela autora – a relação língua/gramática/ensino – assim como a tese por ela defendida – língua é mais que gramática, portanto não são a mesma coisa – ficaram muito claros. Terceira, a tessitura argumentativa da obra que pode ser dividida em três partes: a primeira envolve os três primeiros capítulos e se constitui basicamente como um preparo para aprofundamento da discussão feita na obra. A autora trata das questões que envolvem a língua e gramática assim como suas definições e distinções; a segunda parte se estende do quarto ao nono capítulo, é quando autora desmitifica os principais e recorrentes equívocos em torno da gramática; e por fim, a terceira parte que envolve os cinco últimos capítulos quando a autora faz um último balanço sobre os equívocos decorridos do quarto ao nono capítulo e apresenta uma proposta de trabalho para o ensino de língua. Ficando dessa maneira cumpridos o trabalho da autora e o meu.
Referências
ANTUNES, Irandé. Muito além da gramática: por um ensino de línguas sem pedras no caminho. São Paulo: Parábola, 2007.
[1] Nas próximas citações curtas optou-se por colocar apenas a página visto que se trata da mesma obra.