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segunda-feira, 31 de outubro de 2011

MUITO ALÉM DA GRAMÁTICA: por um ensino de línguas sem pedras no caminho, de Irandé Antunes, 2007.


 Por Melquezedeque Farias Rosa



        O problema da produção de conhecimentos científicos, pelos menos um de seus problemas, está em que ele ocorre bastante em circuito fechado, ou seja, ele fica circunscrito ao universo acadêmico. Desse universo pouco chega até o público em geral; e quando chega, a linguagem muito especializada exige um leitor que tenha pelo menos noções básicas da questão tratada. Quando se trata de questões lingüísticas relativas ao ensino de línguas não é diferente, esse conhecimento chega ao público, por extensão, através de professores no ambiente formal escolar. Sob tal contexto aqui levemente apresentado, Antunes (2007), em sua discussão sobre gramática e ensino de línguas na escola, representa uma abertura do circuito ao trazer para a superfície social conhecimentos científicos lingüísticos numa linguagem arejadamente acessível para o publico geral.
         Em tal feito, a autora apresenta uma leitura de que língua é mais que gramática visto que gramática é apenas um de seus componentes, componente este “que inclui as regras para se construir palavras e sentenças da língua” (ANTUNES, 2007, p. 40)[1]; outro componente da língua é o léxico, “que inclui o conjunto de palavras, ou, em termos mais correntes, o vocabulário da língua” (p.40). Esses dois componentes se imbricam (inter-relacionam) em processos de uso da língua nas variadas situações socialmente necessárias que conlevam para regras de textualização e normas sociais de atuação. Isso implica para o ensino de línguas, segundo a autora, três questões ordenadas da seguinte maneira: “1º) questões relativas a seu léxico; 2º) questões relativas à sua realização em textos; 3º) questões relativas às condições sociais da produção e da circulação desses textos” (p. 44).  Dessa maneira, o ensino de línguas não se limitaria apenas a ensinar gramática como que essa fosse capaz de dar conta da totalidade complexa que é uma língua.
         A obra está estruturada em quatorze capítulos. No primeiro, apresenta-se a gramática como uma área onde se situam ou por onde passam os conflitos da materialidade histórica. Ou seja, conflitos de natureza política, social, econômica e histórica, que envolvem questões de natureza lingüística. A elaboração de uma gramática não escapa a essas questões visto que a língua compõe rol das preocupações nacionais relativas a fronteiras geográficas e a centralização de poder.
         No segundo capítulo são apresentadas cinco concepções de gramática: 1ª) Gramática enquanto conjunto de regras que definem o funcionamento de uma língua. 2ª) Gramática enquanto conjunto de normas que regulam o uso da norma culta. 3ª) Gramática enquanto perspectiva dos fatos da linguagem. 4ª) Gramática enquanto disciplina de estudo. 5ª) Gramática enquanto compêndio descritivo-normativo sobre a língua.
         No terceiro capítulo a autora apresenta restritamente “os equívocos em torno das questões gramaticais e de seu ensino” (p. 36). Segundo a autora tais equívocos, historicamente herdados, se configuram em considerações de que “língua e gramática são a mesma coisa; basta saber gramática para falar, ler e escrever com sucesso; explorar nomenclaturas e classificações é estudar gramática; a norma prestigiada é a única lingüisticamente válida; toda atuação verbal tem que se pautar pela norma prestigiada; o respaldo para a aceitação de um novo padrão gramatical está prioritariamente nos manuais de gramática” (p. 37-38). Do quarto ao nono capítulos a autora vai desfazendo cada um desses equívocos apontados aqui nesse parágrafo.
         No quarto capítulo, é feito a distinção entre língua e gramática desfazendo o equivoco são a mesma coisa. Segundo a autora,

[...] a língua, por ser atividade interativa, direcionada para a comunicação social, supõe outros componentes além da gramática, todos, relevantes, cada um constitutivo à sua maneira e em interação com os outros. De maneira que uma língua é uma entidade complexa, um conjunto de subsistemas que integram e se interdependem irremediavelmente. (ANTUNES, 2007, p. 40)

A gramática é apenas um dos componentes da língua cuja função condiz com a formação de palavras e frases ou sentenças. O outro componente da língua é o léxico enquanto “conjunto relativamente extenso de palavras, à disposição dos falantes, as quais constituem as unidades de base com que construímos o sentido de nossos enunciados” (p. 42). Por essa razão “língua e gramática não se equivalem e, por isso, o ensino de línguas não pode constituir-se apenas de lições de gramática” (p.44).
O quinto capítulo dedica-se à desfacção do equívoco de que: “basta saber gramática para falar, ler e escrever com sucesso” (p. 38). Pois para se produzir um gênero textual qualquer, exigem-se conhecimentos além do gramatical, conhecimentos de regras de textualização, de interação segundo o contexto envolvente no ato da produção. A interação verbal, segundo a autora, requer três tipos de conhecimento: “do real ou do mundo; das normas de textualização; das normas sociais de uso da língua. real do mundo” (p.55). 
O sexto capítulo é dedicado a desfazer equívoco de que “explorar nomenclaturas e classificações é estudar gramática” (p.38). Segundo a autora, nomenclaturas e classificações “são apenas elementos da terminologia gramatical, isto é, rótulos, nomes das unidades da gramática” (p. 70). O estudo da terminologia gramatical não é o estudo das regras de funcionamento gramática da língua. É necessário ter clareza de que regras gramaticais “são as normas que especificam os usos da língua, que ditam como devem ser a constituição de suas várias unidades, em seus diferentes estratos (o fonológico, o morfossintático, o semântico, o pragmático)” (p.71). As nomenclaturas têm função metalingüística no sentido de possibilitar a comunicação na área de estudos da linguagem e não a função de desenvolver no falante a competência comunicativa oral e escrita.
O sétimo capítulo dedica-se a desfazer o equívoco de que “a norma prestigiada é a única lingüisticamente válida” (p. 38). Para tal, a autora estabelece algumas distinções e alguns conceitos. A distinção entre norma como regularidade e norma como prescrição que se desdobra na distinção entre norma lingüística como normalidade e norma lingüística como normatividade. O conceito de norma culta enquanto “um requisito lingüístico-social próprio para as situações comunicativas formais, sobretudo para aquelas atividades ligadas à escrita” (p.88).  A distinção entre norma culta ideal e norma culta real. O conceito de norma-padrão enquanto “associado a um projeto da sociedade letrada de pretender garantir, para a comunidade nacional, uma certa maior uniformidade lingüística, entendida aqui como o cuidado por criar uma língua comum, estandardizada, com ênfase no geral, e não em particularidades regionais, locais ou setoriais” (p.94). Ao estabelecer essas distinções e conceitos, a autora torna visível que a língua não é homogênea em nenhuma instância, que aquilo que se entende como norma culta e norma-padrão não passa de uma convenção socio-historicamente idealizada e abstraída do mundo real. A variação lingüística é um fenômeno inalienável da realidade concreta. A heterogeneidade lingüística é fenômeno objetivamente observável. Não existe um único modo de falar uma língua. Por isso, “a “norma socialmente prestigiada não é a única norma lingüisticamente válida” (p. 100).
O oitavo capítulo é dedicado a desfazer o equívoco de que “toda atuação verbal tem que se pautar pela norma prestigiada”. Sobre isso A autora argumenta: “a ciência lingüística defende que o bom uso da língua é aquele que é adequado às condições de uso” (p. 104).  Em outras palavras que o uso da língua depende da situação que lhe é própria. Em situações informais é próprio o uso informal da língua não por uma questão de normatividade, mas por uma questão de normalidade.
O nono capítulo é dedicado ao último equivoco apontado pela a autora: o de que “o respaldo para a aceitação de um novo padrão gramatical está prioritariamente nos manuais de gramática” (p. 38). Para a autora, embora os manuais possam servir de respaldo para usos variados (alternativos) da língua, é necessário também se servir dos “usos que predominam nos setores da comunicação pública e formal – como a literatura ou a imprensa – para decidir sobre as formas preferidas do usuário” (p. 115).  E mais adiante, ela finaliza: “Os usos que, de fato, são reconhecidos no momento constituem um suporte legítimo para apoiar novas decisões lingüísticas. A gramática não representa, portanto, a única referência de consulta” (p.116).  
No décimo capítulo a autora analisa os equívocos apontados no capítulo três, que foram discutidos do quarto ao nono capítulo, respondendo a três questões: de onde vêm os equívocos; quem os mantém; a quem ou a que servem? Segundo a autora “os equívocos em apreço resultam da falta de um conhecimento de base científica em relação a: o que é uma língua; como funciona; que componentes apresenta; que implicações sociais e políticas estão embutidas em seus usos” (p. 119-120).  Esses equívocos se estabeleceram historicamente e tradicionalmente associados a concepções de língua centradas na estrutura interna, ou seja, valorizando prioritariamente os aspectos formais.  Esses equívocos são mantidos ainda hoje por toda a sociedade através de suas instituições, das relações familiares, dos meios de comunicação, etc. Quanto a quem ou a que servem esses equívocos? A autora não fala explicitamente, mas é possível compreender das entrelinhas.  
No décimo primeiro capítulo, a autora faz uma análise de uma atividade escolar muito aquém do texto. A atividade apresenta o equívoco de que “explorar nomenclaturas e classificações é estudar gramática”. Daí, a autora sugere outros caminhos possíveis para se trabalhar com o texto proposto pela atividade. Caminhos que consideram o texto não como mero pretexto para se verificar elementos soltos. Caminhos para uma análise real do texto.
No décimo segundo capítulo, a autora aprofunda as sugestões iniciadas no capítulo anterior. Ela sugere um programa de ensino de línguas. Um programa que nas palavras da própria autora “ajude o professor a avançar para além da gramática propriamente, já que ela é insuficiente para o exercício da atividade verbal” (...) (p. 133). Tal Programa se articula focalizado no texto, na frase e na palavra, contemplando dessa maneira não apenas a estrutura interna da língua. A autora faz com base nesse programa uma análise de um texto mostrando a viabilidade de sua proposta.
No décimo terceiro capítulo, a autora analisa como as novas concepções de língua tratada por ela ao longo da obra repercutem no ensino escolar. Ela sintetiza, com base nas novas concepções, que “o funcionamento das línguas é uma atividade interativa, entres dois ou mais interlocutores, que se realiza sob a forma de textos orais ou escritos, veiculados em diferentes suportes, com diferentes propósitos comunicativos, e em conformidade com fatores socioculturais e contextuais” (p.146).  Devido a isso,

[...] a escola irá se concentrar em atividades de compreensão e análise de textos orais e escritos; de convivência com o patrimônio literário da região e do país; de reflexão e debate em torno de temas que põem em relação as variedades lingüísticas e a realidade social e política do país; de elaboração de textos orais e escritos, de diferentes registros e finalidades, com ênfase nos procedimentos de planejamentos e de revisão. (ANTUNES, 2007, p. 146)

            O que propõe a autora demanda mudanças no ambiente escolar que dêem condição para sua aplicabilidade. A autora aponta as seguintes: “seriam revistos os objetivos do ensino” (p. 146); “maior destaque e funcionalidade ao espaço destinado à biblioteca, às salas de leitura, às salas de debates e de outros recursos midiáticos” (p. 152); “as questões de linguagem fariam parte do interesse e do cuidado de todos os professores da escola” (p. 153); “a distribuição das aulas havia de contemplar a articulação de vários componentes da língua” (p. 154); “a definição dos programas teria que passar por uma séria revisão” (p. 154); “o foco das aulas deixaria de ser a correção para ser o ensino, a exploração, a investigação, a pesquisa, a procura” (p. 155); “as salas de aula teriam que contar, no máximo com 30 alunos”. (p. 155)
         Encerrando a obra no décimo quarto capítulo, a autora numa alusão a um poema de Drummond argumenta que “língua e gramática não são uma rima, porque não alinham pelo mesmo padrão sonoro; pelo mesmo tom. A língua tem mais acordes, tem mais vibrações; tem uma pauta maior, com mais notas, mais variações” (p. 159-160). Ou seja, a língua está muito além da gramática.
         Antes de encerrar esse texto ainda se fazem necessárias algumas observações. Primeira, o objetivo da autora em escrever uma obra para o público geral foi conseguido com bastante êxito. A obra de fato não oferece grandes dificuldades para compreensão. Segunda, o assunto tratado pela autora – a relação língua/gramática/ensino – assim como a tese por ela defendida – língua é mais que gramática, portanto não são a mesma coisa – ficaram muito claros. Terceira, a tessitura argumentativa da obra que pode ser dividida em três partes: a primeira envolve os três primeiros capítulos e se constitui basicamente como um preparo para aprofundamento da discussão feita na obra. A autora trata das questões que envolvem a língua e gramática assim como suas definições e distinções; a segunda parte se estende do quarto ao nono capítulo, é quando autora desmitifica os principais e recorrentes equívocos em torno da gramática; e por fim, a terceira parte que envolve os cinco últimos capítulos quando a autora faz um último balanço sobre os equívocos decorridos do quarto ao nono capítulo e apresenta uma proposta de trabalho para o ensino de língua. Ficando dessa maneira cumpridos o trabalho da autora e o meu.      


Referências

ANTUNES, Irandé. Muito além da gramática: por um ensino de línguas sem pedras no caminho. São Paulo: Parábola, 2007.


[1] Nas próximas citações curtas optou-se por colocar apenas a página visto que se trata da mesma obra.

DA FALA PARA ESCRITA: atividades de retextualização, de Luiz Antônio Marcuschi, 2001.

Por Melquezedeque Farias Rosa


         A relevância é um dos critérios para se produzir uma obra de caráter cientificamente propositivo. E nesse sentido, o trabalho de Marcuschi é relevantemente plausível, apesar de alguns limites que o contornam. Pois trata de uma questão cujo entorno ainda se reveste de confusões: a questão da fala e da escrita e da passagem de uma para outra através do processo de retextualização. Mas para fazer essa passagem é necessário ter claramente uma concepção de língua que a suporte, que para o autor é a de língua enquanto fundada nos usos que fazem dela os falantes segundo suas intenções comunicativas.
Estruturando sua obra em dois capítulos, Marcuschi trata no primeiro capítulo de desfazer o preconceito ainda existente entre fala e escrita colocando-as em relação de igualdade de importância. O autor faz isso como desdobramento da discussão sobre oralidade e letramento que intitula esse primeiro capítulo.  Nessa esteira, Marcuschi discute a distinção não-dicotômica entre oralidade e letramento – concebidos como práticas sociodiscursivas – e entre fala e escrita – concebidas como modalidades de uso da língua.
O segundo capítulo dedica-se às sugestões de Marcuschi sobre o processo de retextualização. É quando o autor analisa e trata da questão da passagem da fala para a escrita de maneira analítica, objetiva e propositiva. Marcuschi argumenta que as diferenças entre fala e escrita “não são polares e sim graduais e contínuas. São duas alternativas de atualização da língua nas atividades sócio-interativas diárias” (2001, p. 46).  Por essa razão, a passagem da fala para a escrita, ou a retextualização como chama Marcuschi, não é um procedimento configurado na anulação de uma dicotomia, mas um procedimento configurado como deslizamento (shifting) de uma modalidade de uso da língua para outra modalidade de uso da língua segundo as intenções comunicativas e as necessidades sociodiscursivas.
Percebe-se, portanto, que Marcuschi em sua obra faz uma proposta para o processo de retextualização da fala para escrita que possa servir para o ensino de língua nas escolas; proposta que pode também contribuir como atividades de compreensão de texto.


Referências

MARCUSCHI, Luiz Antônio. Da fala para escrita: atividades de retextualização. São Paulo: Cortez, 2001.

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

LUTAR COM PALAVRAS __ coesão e coerência, de Irandé Antunes, 2005.

Por Melquezedeque Farias Rosa

        O processo de produção textual exige do autor uma série de cuidados imprescindíveis para um resultado final satisfatório. Para atender a esses cuidados se faz necessário o uso de táticas estrategicamente concatenadas às necessidades objetivas da produção. E é ai que entra a questão da coesão e da coerência. Indissociavelmente. No entanto, tal questão ainda parece um tanto nebulosa para aqueles, incluindo-se destacadamente professores e estudantes, que lidam cotidianamente com produção textual, não importando o gênero. Por essa razão, Antunes (2005) vem bem a calhar, pois trata de maneira surpreendentemente didática a questão da coerência e da coesão, fazendo os cortes e recortes teóricos e práticos necessários e equilibrados para levar o leitor a uma compreensão sem grandes obstáculos; embora, que para tal êxito, Antunes (2005) tenha precisado aqui e ali sacrificar um pouco categoricamente a discussão, ou seja, tenha precisado podar o uso de certas categorias utilizadas no universo dos estudos da linguagem.
A obra está dividida em onze capítulos cujo eixo temático central é a relação e uso da coesão e da coerência ao longo do processo de tessitura da produção escrita. A autora dá uma aula de dialética aplicada à produção de texto; do primeiro ao último capítulo ela dialoga com a totalidade e as particularidades da produção textual e constrói seu próprio texto na perspectiva desse seu diálogo.
         A autora usa o primeiro e o segundo capítulos para iniciar o leitor na discussão que está por vir; prepara o leitor para a discussão central de sua obra que é a questão da coesão e da coerência em termos práticos e objetivos. Nesses dois primeiros capítulos são apresentadas algumas “noções básicas acerca da propriedade textual da coesão e de sua relação com a coerência” assim como algumas definições importantes para a compreensão prática do uso ou aplicação desses conceitos teóricos. Nessa esteira é feito um balanço crítico sobre o tratamento recebido pela produção escrita nas escolas, que, segundo aponta a autora, a insuficiência no ensino está relacionada à “primazia quase absoluta da oralidade” (p. 26) e ao fato de que “as oportunidades de escrita limitam-se a uma escrita com finalidade escolar apenas” (p. 26), sem levar em consideração as necessidades usuais da língua nas diversas práticas sociais. Somando isso a outros apontamentos feitos, ela entende que a escola ainda segue velhos rumos de ensino/aprendizagem.
A necessidade de superar esses velhos rumos torna também necessário definir ou justificar nitidamente: o processo de escrever (textos), a razão da centralidade do texto, o que nele devemos buscar e como fazê-lo. O processo de escrever é, em síntese, definido como um conjunto de características que configura a escrita enquanto uma atividade de interação verbal cooperativa e contextualizada necessariamente textual, tematicamente orientada, intencionalmente definida e que envolve tanto especificidades lingüísticas quanto pragmáticas; a razão da centralidade do texto é justificada pela autora com o argumento de que “ninguém interage verbalmente a não ser por meio de textos” (p. 40), sejam eles falados, ouvidos lidos ou escritos; e quanto ao que no texto devemos buscar e como fazê-lo concerne com a questão geral da coesão e da coerência e também da informatividade e da intertextualidade pertinentes ao processo de produção escrita segundo a finalidade intencionada.
E é justamente  sobre a questão da coesão que Antunes (2005) dedica o segundo capítulo chegando à seguinte definição: “propriedade pela qual se cria e se sinaliza toda espécie de ligação, de laço, que dá ao texto unidade de sentido ou unidade temática” (p. 47). E tal definição de coesão traz no bojo a função da coesão que nas palavras da própria autora é “a de criar, estabelecer e sinalizar os laços que deixam os vários segmentos do texto ligados, articulados, encadeados” (p. 47).
Após todos esses esclarecimentos, Antunes (2005) passa a questão central de seu trabalho que é apresentar os meios de se fazer coeso e coerentemente um texto; ela mostra através de problematizações teóricas e de vários exemplos o que é e o que não é um texto coeso e coerente. Isso se passa do terceiro ao nono capítulo. O curioso é que a autora primeiro explica a propriedade da coesão em sua totalidade envolvente, incluindo a coerência, logo no terceiro capítulo, e em seguida ela vai tratando parte a parte, a cada capítulo, paciente e progressivamente, todos os passos de facção de um texto explicando como se dá e se faz a coesão e a coerência.
Antunes (2005), dessa maneira, do terceiro ao nono apresenta uma explanação geral da propriedade da coesão que permite a continuidade semântica estabelecida na sintaxe, que segundo Antunes (2005) se divide em relações textuais, cada relação textual com seu(s) procedimento(s) e cada procedimento com seu(s) recurso(s). As relações textuais podem ser por reiteração, por associação e por conexão. As relações textuais por reiteração podem ter como procedimento a repetição ou a substituição; as relações textuais por associação têm como procedimento a seleção lexical; e as relações textuais por conexão têm como procedimento a relação sintático-semântica. O procedimento da repetição tem como recursos a paráfrase, o paralelismo e a repetição propriamente dita; o procedimento da substituição tem como recursos a substituição gramatical, a substituição lexical e a elipse; o procedimento da seleção lexical tem como recurso a seleção de palavras semanticamente próximas; o procedimento da relação sintático-semântica tem como recurso o uso de diferentes conectores.
Ao longo de toda a explanação que se estende do terceiro ao nono capítulo fica claro que coesão subjaz a coerência para autora. Ambas são indissociáveis visto que coesão e coerência são elementos imprescindíveis para a continuidade semântica, para a continuidade temática.  Mas somente no décimo capítulo a autora vai tratar diretamente da questão da coerência definida por ela comouma propriedade que tem a ver com as possibilidades de o texto funcionar como uma peça comunicativa, como um meio de interação verbal” (p. 176). E é também no décimo capítulo que a autora vai tratar mais elucidativamente da relação interdependente, binominal, entre coesão e coerência ao argumentar, em síntese, que a coerência textual é tanto lingüística quanto pragmática e que se estabelece em contigüidade com a coesão textual.
Figuradamente, coesão e coerência não apenas existem, elas também coexistem indissociavelmente na ossatura e na carne do corpo textual; e são orientadas pelos comandos desse corpo, por sua motivação, busca ou finalidade no jogo das interações corporais segundo as necessidades e exigências extracorporais. É possível permutar toda expressão em itálico anterior por: enquanto propriedades lingüísticas na estrutura gramatical com a função de meio de interação verbal sob comando intencional dos interlocutores em suas práticas necessariamente sociodiscursivas.
Tal relação entre coesão e coerência fica ainda mais clara nas palavras da autora quando diz: “A coesão é uma decorrência da própria continuidade exigida pelo texto, a qual, por sua vez, é exigência da unidade que dá coerência ao texto” (p. 177).  E no parágrafo seguinte ela complementa: “Existe, assim, uma cadeia facilmente reconhecida entre continuidade, unidade e coerência. De maneira que é artificial separar coesão de coerência, assim como é artificial separar forma de conteúdo, ou sintaxe de semântica, por exemplo” (p. 177).
No entanto, para maior aprofundamento da questão da coerência, Antunes (2005) traz outro autor para fazer a discussão, traz Charrolles com sua proposta de regras de coerência aplicada ao nível da frase, que Antunes (2005) entende como também aplicável ao nível do texto. Isso porque segundo Antunes (2005) “Tal como para o plano da frase, existem critérios que regulam a boa formação textual ou, em outros termos, existe uma norma mínima de composição textual. Em termos gerais, essa norma é comum a todos os membros de uma comunidade lingüística e constitui a competência textual dos falantes dessa comunidade” (p. 179-180). 
As regras de coerência de charrolles, pelo menos naquilo que dispõe a apresentação de Antunes (2005), se ancoram em dois pontos: “elas regulam a constituição da seqüência do texto ou a forma como se organiza a cadeia textual” (p. 181) e “exigem que tenha em conta parâmetros pragmáticos do evento comunicativo e outros fatores presentes na situação” (p. 181); sendo o primeiro primordial ao segundo ponto ao passo que são indissociáveis.
As regras de coerência proposta por charrolles são as seguintes: 1) Meta-regra da repetição, que corresponde em linha geral com as relações textuais por reiteração; 2) meta-regra da progressão, diz respeito à continuidade temática (ou semântica) do texto exigindo relação de contigüidade, de associação entres os elementos que surgem e os já estabelecidos; 3) Meta-regra da não contradição, que corresponde linha geral com as relações textuais por associação que têm como procedimento a seleção lexical; 4) meta-regra da relação, que corresponde em parte com as relações textuais por conexão que têm como procedimento a relação sintático-semântica. Como Argumenta Antunes (2005), “as regras de coerência textual mantêm visíveis ligações com as determinações da coesão. Isto é, elas corroboram o princípio fundamental de que coesão e coerência são propriedades que conjugam elementos lingüísticos e elementos pragmáticos” (p. 186).
Ufa! Quebrando regra de estilo e começando esse parágrafo final com uma deselegante interjeição de bom fôlego, é possível em termos amplos reconhecer bastante positivamente o trabalho desenvolto em Antunes (2005). Embora, haja vista a complexidade da questão tratada, a autora tenha feito, por finalidade didática já referida no começo dessa resenha, cortes e recortes teóricos exigidos para os delimites desse trabalho que, talvez, tenha dado certo tom de fórmula para a questão da produção coesa e coerente de gêneros textuais. Mas, essa possibilidade se perde sob um olhar mais aconchegante para intenção da autora com seu trabalho e também para a maneira como ela o estrutura preocupada com aqueles que dele fará uso e útil. Como a própria autora diz na introdução, quando se refere às noções básicas para um texto coeso e coerente: “Minha pretensão com este trabalho é contribuir para que qualquer leitor interessado na questão possa ter acesso a essas noções básicas e possa compreender um pouco mais acerca do que fazer para deixar o texto articulado, encadeado; enfim, coeso e coerente” (p.12). E no capítulo final ela faz seguinte retomada da questão: “Conhecer explicitamente os recursos que deixam um texto coeso, conhecer explicitamente regras de coerência é, portanto, benéfico a qualquer pessoa, sobretudo àquelas que, de alguma forma, fazem da linguagem seu instrumento de trabalho” (p. 191). A palavra pode ser tijolo para uma ponte ou para um muro, a depender do uso que fizer dela o construtor. Mas há aqueles construtores que assumem o papel de mestres de ofício e se dedicam ajudar os outros no processo de construção, e esses mestres de ofícios fazem disso sua luta, uma luta pela palavra, com a palavra.    

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Breve história de uma vida inteira/ Série Contos tristes/ Melquezedeque Farias Rosa



Madalena nasceu de sete meses no sétimo mês de um ano impreciso, lá nas brenhas da fazenda munguba com suas serras altas e um verde monstruosamente canavial. Aos sete anos perdeu o pai, mais sete anos achou a mãe que de nada lhe serviu, aos dezessete estava perdida no mundo enquanto Amaro morria de saudades. Ela vivia pelas gandaias da linha do trem na cidade de Muricy, faturando melhor aos sábados, domingos, feriados e em dias de enterro. Carregava um sorriso largo, uma malícia matuta, e o desejo da derrota. Mas ai apareceu João Paulo, uma benção caída dos céus. Madalena foi levada à capital, promoveu-se na vida, da linha do trem pra orla de Maceió, faturava mais, a vida melhorou, o único contratempo eram as bolachas que João Paulo vez ou outra lhe dava. Juntou umas patacas, e iludida por uma falsa intenção debandou pra Brasília aos serviços de um tal engravatado. Lá houve umas denúncias, Madalena acabou sendo implicada, quase foi presa, ficou famosa nos noticiários. Ameaçada e assustada voltou pra Munguba onde morava uma tia-avó de segundo grau. Reencontrou Amaro que lhe ofereceu o coração em troca da mão, mas só recebeu uma recompensa em carne e suor. O mundo levou Madalena outra vez antes que Amaro vivesse de amor. Madalena não tinha coração pra ninguém, só tinha olhos pro mundo. E a estrada torta de sua vida a levou a Recife. Um dono de pousada em Boa Viagem lhe deu abrigo e ela lhe deu a única coisa que podia. Arisca, cansou, pensou, voltou, sorriu e Amaro avermelhou-se aos seus pés. O tempo passou, os filhos vieram, o mundo mudou, os cabelos se embranqueceram. Amaro ainda lhe era devotado, e a devoção era pra ela sentimento estranho. E foi assim pelos restos dos sonos de sua vida até que dormiu e não acordou mais. Por mais alguns anos ainda viveu na saudade que matou Amaro. E mesmo na saudade não conseguiu correspondê-lo. Madalena a vida toda viveu nada e só amou ninguém.