Por Melquezedeque Farias Rosa
O processo de produção textual exige do autor uma série de cuidados imprescindíveis para um resultado final satisfatório. Para atender a esses cuidados se faz necessário o uso de táticas estrategicamente concatenadas às necessidades objetivas da produção. E é ai que entra a questão da coesão e da coerência. Indissociavelmente. No entanto, tal questão ainda parece um tanto nebulosa para aqueles, incluindo-se destacadamente professores e estudantes, que lidam cotidianamente com produção textual, não importando o gênero. Por essa razão, Antunes (2005) vem bem a calhar, pois trata de maneira surpreendentemente didática a questão da coerência e da coesão, fazendo os cortes e recortes teóricos e práticos necessários e equilibrados para levar o leitor a uma compreensão sem grandes obstáculos; embora, que para tal êxito, Antunes (2005) tenha precisado aqui e ali sacrificar um pouco categoricamente a discussão, ou seja, tenha precisado podar o uso de certas categorias utilizadas no universo dos estudos da linguagem.
A obra está dividida em onze capítulos cujo eixo temático central é a relação e uso da coesão e da coerência ao longo do processo de tessitura da produção escrita. A autora dá uma aula de dialética aplicada à produção de texto; do primeiro ao último capítulo ela dialoga com a totalidade e as particularidades da produção textual e constrói seu próprio texto na perspectiva desse seu diálogo.
A autora usa o primeiro e o segundo capítulos para iniciar o leitor na discussão que está por vir; prepara o leitor para a discussão central de sua obra que é a questão da coesão e da coerência em termos práticos e objetivos. Nesses dois primeiros capítulos são apresentadas algumas “noções básicas acerca da propriedade textual da coesão e de sua relação com a coerência” assim como algumas definições importantes para a compreensão prática do uso ou aplicação desses conceitos teóricos. Nessa esteira é feito um balanço crítico sobre o tratamento recebido pela produção escrita nas escolas, que, segundo aponta a autora, a insuficiência no ensino está relacionada à “primazia quase absoluta da oralidade” (p. 26) e ao fato de que “as oportunidades de escrita limitam-se a uma escrita com finalidade escolar apenas” (p. 26), sem levar em consideração as necessidades usuais da língua nas diversas práticas sociais. Somando isso a outros apontamentos feitos, ela entende que a escola ainda segue velhos rumos de ensino/aprendizagem.
A necessidade de superar esses velhos rumos torna também necessário definir ou justificar nitidamente: o processo de escrever (textos), a razão da centralidade do texto, o que nele devemos buscar e como fazê-lo. O processo de escrever é, em síntese, definido como um conjunto de características que configura a escrita enquanto uma atividade de interação verbal cooperativa e contextualizada necessariamente textual, tematicamente orientada, intencionalmente definida e que envolve tanto especificidades lingüísticas quanto pragmáticas; a razão da centralidade do texto é justificada pela autora com o argumento de que “ninguém interage verbalmente a não ser por meio de textos” (p. 40), sejam eles falados, ouvidos lidos ou escritos; e quanto ao que no texto devemos buscar e como fazê-lo concerne com a questão geral da coesão e da coerência e também da informatividade e da intertextualidade pertinentes ao processo de produção escrita segundo a finalidade intencionada.
E é justamente sobre a questão da coesão que Antunes (2005) dedica o segundo capítulo chegando à seguinte definição: “propriedade pela qual se cria e se sinaliza toda espécie de ligação, de laço, que dá ao texto unidade de sentido ou unidade temática” (p. 47). E tal definição de coesão traz no bojo a função da coesão que nas palavras da própria autora é “a de criar, estabelecer e sinalizar os laços que deixam os vários segmentos do texto ligados, articulados, encadeados” (p. 47).
Após todos esses esclarecimentos, Antunes (2005) passa a questão central de seu trabalho que é apresentar os meios de se fazer coeso e coerentemente um texto; ela mostra através de problematizações teóricas e de vários exemplos o que é e o que não é um texto coeso e coerente. Isso se passa do terceiro ao nono capítulo. O curioso é que a autora primeiro explica a propriedade da coesão em sua totalidade envolvente, incluindo a coerência, logo no terceiro capítulo, e em seguida ela vai tratando parte a parte, a cada capítulo, paciente e progressivamente, todos os passos de facção de um texto explicando como se dá e se faz a coesão e a coerência.
Antunes (2005), dessa maneira, do terceiro ao nono apresenta uma explanação geral da propriedade da coesão que permite a continuidade semântica estabelecida na sintaxe, que segundo Antunes (2005) se divide em relações textuais, cada relação textual com seu(s) procedimento(s) e cada procedimento com seu(s) recurso(s). As relações textuais podem ser por reiteração, por associação e por conexão. As relações textuais por reiteração podem ter como procedimento a repetição ou a substituição; as relações textuais por associação têm como procedimento a seleção lexical; e as relações textuais por conexão têm como procedimento a relação sintático-semântica. O procedimento da repetição tem como recursos a paráfrase, o paralelismo e a repetição propriamente dita; o procedimento da substituição tem como recursos a substituição gramatical, a substituição lexical e a elipse; o procedimento da seleção lexical tem como recurso a seleção de palavras semanticamente próximas; o procedimento da relação sintático-semântica tem como recurso o uso de diferentes conectores.
Ao longo de toda a explanação que se estende do terceiro ao nono capítulo fica claro que coesão subjaz a coerência para autora. Ambas são indissociáveis visto que coesão e coerência são elementos imprescindíveis para a continuidade semântica, para a continuidade temática. Mas somente no décimo capítulo a autora vai tratar diretamente da questão da coerência definida por ela como “uma propriedade que tem a ver com as possibilidades de o texto funcionar como uma peça comunicativa, como um meio de interação verbal” (p. 176). E é também no décimo capítulo que a autora vai tratar mais elucidativamente da relação interdependente, binominal, entre coesão e coerência ao argumentar, em síntese, que a coerência textual é tanto lingüística quanto pragmática e que se estabelece em contigüidade com a coesão textual.
Figuradamente, coesão e coerência não apenas existem, elas também coexistem indissociavelmente na ossatura e na carne do corpo textual; e são orientadas pelos comandos desse corpo, por sua motivação, busca ou finalidade no jogo das interações corporais segundo as necessidades e exigências extracorporais. É possível permutar toda expressão em itálico anterior por: enquanto propriedades lingüísticas na estrutura gramatical com a função de meio de interação verbal sob comando intencional dos interlocutores em suas práticas necessariamente sociodiscursivas.
Tal relação entre coesão e coerência fica ainda mais clara nas palavras da autora quando diz: “A coesão é uma decorrência da própria continuidade exigida pelo texto, a qual, por sua vez, é exigência da unidade que dá coerência ao texto” (p. 177). E no parágrafo seguinte ela complementa: “Existe, assim, uma cadeia facilmente reconhecida entre continuidade, unidade e coerência. De maneira que é artificial separar coesão de coerência, assim como é artificial separar forma de conteúdo, ou sintaxe de semântica, por exemplo” (p. 177).
No entanto, para maior aprofundamento da questão da coerência, Antunes (2005) traz outro autor para fazer a discussão, traz Charrolles com sua proposta de regras de coerência aplicada ao nível da frase, que Antunes (2005) entende como também aplicável ao nível do texto. Isso porque segundo Antunes (2005) “Tal como para o plano da frase, existem critérios que regulam a boa formação textual ou, em outros termos, existe uma norma mínima de composição textual. Em termos gerais, essa norma é comum a todos os membros de uma comunidade lingüística e constitui a competência textual dos falantes dessa comunidade” (p. 179-180).
As regras de coerência de charrolles, pelo menos naquilo que dispõe a apresentação de Antunes (2005), se ancoram em dois pontos: “elas regulam a constituição da seqüência do texto ou a forma como se organiza a cadeia textual” (p. 181) e “exigem que tenha em conta parâmetros pragmáticos do evento comunicativo e outros fatores presentes na situação” (p. 181); sendo o primeiro primordial ao segundo ponto ao passo que são indissociáveis.
As regras de coerência proposta por charrolles são as seguintes: 1) Meta-regra da repetição, que corresponde em linha geral com as relações textuais por reiteração; 2) meta-regra da progressão, diz respeito à continuidade temática (ou semântica) do texto exigindo relação de contigüidade, de associação entres os elementos que surgem e os já estabelecidos; 3) Meta-regra da não contradição, que corresponde linha geral com as relações textuais por associação que têm como procedimento a seleção lexical; 4) meta-regra da relação, que corresponde em parte com as relações textuais por conexão que têm como procedimento a relação sintático-semântica. Como Argumenta Antunes (2005), “as regras de coerência textual mantêm visíveis ligações com as determinações da coesão. Isto é, elas corroboram o princípio fundamental de que coesão e coerência são propriedades que conjugam elementos lingüísticos e elementos pragmáticos” (p. 186).
Ufa! Quebrando regra de estilo e começando esse parágrafo final com uma deselegante interjeição de bom fôlego, é possível em termos amplos reconhecer bastante positivamente o trabalho desenvolto em Antunes (2005). Embora, haja vista a complexidade da questão tratada, a autora tenha feito, por finalidade didática já referida no começo dessa resenha, cortes e recortes teóricos exigidos para os delimites desse trabalho que, talvez, tenha dado certo tom de fórmula para a questão da produção coesa e coerente de gêneros textuais. Mas, essa possibilidade se perde sob um olhar mais aconchegante para intenção da autora com seu trabalho e também para a maneira como ela o estrutura preocupada com aqueles que dele fará uso e útil. Como a própria autora diz na introdução, quando se refere às noções básicas para um texto coeso e coerente: “Minha pretensão com este trabalho é contribuir para que qualquer leitor interessado na questão possa ter acesso a essas noções básicas e possa compreender um pouco mais acerca do que fazer para deixar o texto articulado, encadeado; enfim, coeso e coerente” (p.12). E no capítulo final ela faz seguinte retomada da questão: “Conhecer explicitamente os recursos que deixam um texto coeso, conhecer explicitamente regras de coerência é, portanto, benéfico a qualquer pessoa, sobretudo àquelas que, de alguma forma, fazem da linguagem seu instrumento de trabalho” (p. 191). A palavra pode ser tijolo para uma ponte ou para um muro, a depender do uso que fizer dela o construtor. Mas há aqueles construtores que assumem o papel de mestres de ofício e se dedicam ajudar os outros no processo de construção, e esses mestres de ofícios fazem disso sua luta, uma luta pela palavra, com a palavra.
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