Olá Pessoas !

Bem-vindos a este Blog, espero que vocês se divirtam cruzando as letras .

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Em breve

Eu estou escrevendo uma obra chamada A Narrativa do Mundo Todo. Penso em ir postando ela pouco a pouco nesse blog mas tenho medo de ser plagiado. Por isso preciso saber se alguem conhece uma forma de evitar que isso ocora para que assim eu me sinta seguro em ir postando.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Reflexões de filócrates

Por Melquezedeque Farias Rosa

               
Meu herói não é herói morto, não é herói de revista, de gibi, nem de filmes importados de uma cultura alienígena qualquer.
         O meu herói é o que eu vejo quando me olho no espelho, é o que eu olho quando me vejo no espelho, é o que eu me espelho quando me olho e me vejo.
        O meu herói sofre com o mundo, com o que o mundo faz do próprio mundo, com o que o mundo faz de seus heróis, com o que os heróis fazem de sim mesmos __ heróis mundanos.   
        O meu herói ri e chora e fala e cala; nasce e cresce e vive e morre; perde e supera e vence e se entrega; se entristece e se renova e se alegra.
O meu herói é herói de carne e osso e nervo; cheio de si mesmo e dos outros e do mundo; feito de coragem e medo e vontade; encara e foge e escapa e reage.
O meu herói leva meu nome e sobrenome; vê em deus sua própria imagem; pensa o mundo dentro de si mesmo; sente o mundo pulsando em seu coração__ herói humano.
O meu herói não tem vergonha de si mesmo, nem se arrepende de seus feitos, nem tampouco crucifica seu passado.
O meu herói é herói sem verdade; é o que sente e se pensa e se vê e se toca e se espelha quando se olha. Não é imbatível, nem tem poderes especiais.
O meu herói é herói da vida; é a própria vida; a vida sou eu; sou meu eu-herói, meu eu-vida. Faço a vida que me faz; a vida-herói sou eu!     

        

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

O GRANDE REI__ O PODER, O SONHO E A ESPERANÇA, de Francisco Malaquias. In: O Grande Rei __ O Poder, o Sonho e a Esperança & Contando o Sete, de Francisco Malaquias e Rodrigo Severiano, 2006.

Por Melquezedeque Farias Rosa

         A obra de Malaquias é uma peça que trata da questão dos direitos sociais básicos para a infância: educação, saúde, lazer, esporte e cultura. A peça está dividida em dois atos e se encerra na abertura de um terceiro. A questão é tratada do ponto de vista de uma criança, Nito, que é a principal personagem e protagonista. A peça se configura num sonho dessa personagem no qual se apresenta um cenário mágico, fantástico para onde se transfere os problemas da realidade social relativos aos direitos básicos supracitados. Tais problemas afligem Nito, o inquietam, o preocupam, e despertam nele dois sentimentos: o desejo de ser adulto para encontrar soluções e a esperança por mudanças concretas. E é justamente essa esperança que o induz ao sonho. Em sonho, ele, ao esfregar uma lâmpada mágica encontrada em sua caixa de brinquedos, se depara com um gênio, o gênio Bluu__ outra personagem importante na peça por representar o conhecimento __ que lhe concede três desejos. Nesse primeiro momento, Nito faz apenas um pedido: o de ser adulto, e é levado pelo gênio para um lugar __ A cidade dos Pequeninos__ governado por um rei tirano __ O Grande Rei __ que no passado havia se apoderado da lâmpada mágica e através de seus pedidos centralizado todo poder e conhecimento em suas mãos e transformado todas as crianças fisicamente em adultos. Ao chegar a esse lugar, Nito e o gênio Bluu são perseguidos por causa da lâmpada pelos guardiões d`O Grande Rei. Em fuga, Nito se separa do gênio Bluu e conhece Lito, de cuja lâmpada No passado, O Grande Rei havia se apoderado, ambos se tornam companheiros de jornada e amigos. Os dois conseguem enganar O Grande Rei confundindo a lâmpada verdadeira com uma falsa trocada com Sales, um vendedor de relíquias. Na confusão, Nito esfrega a lâmpada mágica verdadeira e, perante O Grande Rei e seus guardiões, seus valetes e seu irmão Junta, faz os dois pedidos que lhe restam ao gênio Bluu: o retorno da infância aos adultos transformados em criança com acesso ao direito à educação, saúde, lazer, esporte e cultura e a libertação definitiva do gênio Bluu para que ele, enquanto representante do conhecimento, nunca mais voltasse a ser usado para o mal como fora no passado ao cair nas mãos d´O Grande Rei.   
         A peça é uma água, uma água potável. À primeira lida, claro. Afinal, quem sobrevive sem água? Sem água potável, claro. Afinal, quem no mundo intelectual das letras se assegura simplesmente numa primeira lida? Eu não, claro! A água produzida por Malaquias vai muito além da fórmula H2O, como veremos. O escritor é uma fonte de água literária jorrando palavras por onde passa, ou melhor, por onde é lido. Quando é lido. Ambíguas minhas palavras, mas não sem sentido, posso jurar. Num mundo onde os recursos minerais estão sob constante ameaça de escassez, água potável costumeiramente tratada como lixo passa a se configurar cada vez mais como luxo. Na literatura, a relação não é diferente. Num universo de produções dedicadas a futilidades, que vão desde propagandas que estimulam o consumismo desenfreado a letras de música que fazem da bunda o símbolo máximo da irracionalidade, o escritor é aquele ousado que oferece logo as duas faces, e sua literatura é a prova de seus crimes. Por isso Malaquias, escritor, essa fonte criminosa de palavras lixuosas, (lixo e luxo em profusão), merecerá como prêmio as pedras que lhe apedrejarem. Sem lixo não há luxo e vice-versa. Por isso, ao escritor é sempre válido o seguinte: a pedrada mais forte costuma ser sempre daqueles que mais gostam e daqueles que menos gostam dele. Isto é o que incentiva o escritor a ser quem ele é: um estranho entre os semelhantes. Nisso o trabalho de um escritor acaba indo muito abaixo de uma questão de concordância/discordância e se reduz a uma questão de gosto, de desgosto, de mau-gosto, de contragosto e d tira-gosto. A questão estética se torna prato fino de um restaurante elitista a petisco de barzinho pega-bêbado. Num universo cheio de água clorificada por causa da poluição dos aqüíferos, ou melhor, glorificada pela estética dos sem-gosto, água potável é tudo que precisamos para matar a sede; e nessa acepção o trabalho de Malaquias é mais do que válido, é superváliso; prova que o pulso da esperança ainda pulsa no horizonte da literatura brasileira, nessa supérflua sociedade de consumo onde cada vez mais se (a)costuma a se reconhecer a arte pelo valor de troca que ela puder exprimir no mercado.
         Oscar Wild, Em seus reboliços proféticos sobre o individualismo anarquista, concebeu a obra de arte em seu livro “A Alma do Homem sob o Socialismo” (p.45) como “o resultado singular de um temperamento singular”; com isso ele quer dizer que a obra de arte não depende do que a sociedade quer, mas do que o autor é. É impossível não reconhecer que essa concepção de arte é tão brilhante quanto ingênua. Brilhante pela ousadia de pressupor um indivíduo imunizado das influências sociais, e ingênua pela mesma razão. Claro que Oscar Wild estava se referindo ao escritor numa sociedade anarquista, socialista, emancipada, sem classes, e, naturalmente, não mercantilista. Mas isto não retira o caráter irredutivelmente social da produção artística. Tanto numa possível sociedade anarquista quanto na sociedade capitalista vigente, o escritor é aquele que produz metano, ou seja, que solta pum, tal como os outros. E metano humano não se produz sem combustão, e combustão não se produz sem ingestão, e ingestão não se faz sem a necessidade de matar a fome, e não se mata a fome sem alimento, e não se consegue alimento sem participação na sociedade. E nossa participação na sociedade é conditio sine qua non para aquilo que produzimos, inclusive a arte.  Quando escrevemos quer queiramos quer não a alteridade está presente. A sociedade participa de  nosso ato de produzir uma obra. Nisso pouco importa a forma de sociabilidade, se socialista ou capitalista. A dialética do sujeito com a sociedade é indissolúvel. O homem é um ser social. Mas, o que o brilhantismo e a ingenuidade da concepção de obra de arte de Oscar Wild tem a ver com a peça de Malaquias? Tem a ver não pelo seu verso, mas pelo seu inverso.  Bem vejamos a partir dos próximos parágrafos.
         Ao transferir os problemas da sua realidade social e para um sonho, Nito também transfere as determinações desses problemas identificadas por ele como sendo de caráter governamental; ou mais especificamente de poder governamental associado à burocracia motivada por falta de vontade política. Claro que essa compreensão não é feita de maneira tão categórica por Nito, afinal estamos falando de uma criança, mas se compreende assim pela maneira como ele expõe sua leitura do mundo em que vive e pela maneira como ele encara a causa dos problemas. Causa essa configurada na principal personagem-antagonista da obra: O Grande Rei. Devemos ainda salientar que Nito é uma construção, uma personagem, e assim como a obra é uma ficção; e o autor estar sempre presente em sua ficção, quase sempre nas entrelinhas dela e de vez em quando saltando claramente a sua superfície. No caso específico da obra “O Grande Rei”, o autor (a)parece junto com a personagem Nito como se ela fosse sua porta-voz. O cenário ou ambiente escolhido pelo autor, um mundo imaginário, e o meio de acesso a esse mundo, o sonho, que sugere fuga da realidade e não o é, assim como a intertextualidade com a literatura árabe na figura de um gênio da lâmpada com nome sugestivo da cultura em remissão, tudo isso é apenas uma recriação no reaproveitamento de elementos da literatura universal a serviço do objetivo central da obra: fazer uma reflexão sobre a problemática dos direitos básicos da criança como diz o próprio autor logo nas primeiras linhas da apresentação (p. 47): A peça tem a finalidade de mostrar de forma lúdica as preocupações com o futuro das crianças. Nessa acepção, o autor deixa clara a função de sua arte: conscientizar e intervir, isto é, incidir na consciência do público que dela se apropriar. Malaquias, dessa maneira, é um lúcido produtor de metano, desses que não são mesquinhos para negar um pum a um amigo como eu, por exemplo; nem mesmo na hora do almoço. É um escritor que visa o público ou vislumbra sua presença. Segue à risca a idéia de que “o artista vai aonde o povo está” . Normal. Isso é o avesso da concepção de Oscar Wild. Ou melhor, se relaciona com a concepção de Oscar Wild pelo seu inverso, e a arte em vez de ser “o resultado singular de um temperamento singular”, passa a ser o meio plural para um temperamento plural, ou mais que isso, a pluralidade no meio na pluralidade do temperamento. Se no caso da concepção de Oscar Wild, a singularidade diz respeito à natureza da construção da obra e do temperamento do individuo, no outro caso a pluralidade diz respeito aos atravessamentos da sociedade no ato de produção de uma obra por um sujeito. E assim, sujeito e sociedade não se excluem no ato da produção; são inexcludentes.

       Contudo, considerando as boas intenções do autor em produzir uma obra reflexiva e crítica, é possível identificar nela aspectos metafísicos e idealista que põem em questionamento se o autor atingiu sua finalidade a contento. O dualismo posto da velha idéia de luta do bem contra o mal e o maniqueísmo configurado nele aproxima a peça duma espécie de teatrologia dos espíritos ou teatrismo da consciência. O bem representado por Nito e Lito, que carregam nas costas o fardo da responsabilidade pela emancipação dos pobres e oprimidos; e o mal representado por O Grande Rei e seu bando, que são responsáveis por toda sorte de infortúnios, de opressão e atacam em três pontos fulcrais: totalizam poder assumindo o governo da cidade dos pequeninos, totalizam o conhecimento se apoderando da lâmpada mágica, e castram a inteligência dos oprimidos impedindo que se desenvolvam no processo natural de crescimento e despertem por seus direitos. Nito e Lito surgem como uma reduplicação consagrada do herói-mocinho e seu ajudante (colaborador, fiel escudeiro). O grande Rei e seu bando são a multiplicação do vilão-bárbaro das forças do mal (das trevas, das profundezas da terra); nada há de mais metafísico do que essa velha fórmula-clichê consagrada ao longo da história da literatura. É uma fórmula que se estabelece convincentemente até na literatura religiosa dos chamados livros sagrados. No Éden, por exemplo, temos o confronto dos primeiros seres humanos, segundo a mitologia hebraica, com a tentação da serpente. Adão e Eva eram o elo que separava o bem do mal, ou melhor, o elo do bem mais próximo do mal. Eram puros, inocentes, ignorantes, crianças divinas correndo no mato com as vergonhas de fora, à mostra no melhor estilo naturista. A luta do bondoso e justiceiro Jeová contra o terrível e persuasivo Lúcifer até então havia se dado frontalmente. O que separava deus do diabo era a incompreensível bondade do primeiro e a incrível maldade do segundo. E o que aproximava Adão e Eva do deus hebraico era justamente o que aproximaria do casal a serpente: a pureza, a inocência, a ignorância. No confronto direto bem sabemos que o anjo negro se encontra impotente perante o onipotente anjo branco. Então a audácia e a persuasão do primeiro venceram uma batalha contra a bondade e o conselho do segundo. A serpente fez o casal donzelo comer da árvore proibida do conhecimento fazendo-lhes promessas e juras. Ela sabia que comendo da árvore o ser humano passaria a questionar, a refletir sobre sua condição existencial, e por motivos de questionamento e reflexões críticas o anjo de luz já havia sido expulso do reino celestial sob as mais terríveis acusações, acusações típicas de quem para si quer todo poder e conhecimento e não aceita dividi-los de forma alguma. E quem insistir ou se rebelar já sabe, é pena de morte na certa, sem balançar as pestanas. Não deu outra, Adão e Eva se deliciaram exaustivamente no pecado mortal da maçã proibida, e já com conhecimento de discernir o bem e o mal, o certo e o errado sabiam que seriam tratados de forma severa pelo criador. O temor, o medo, talvez o pavor da punição inevitável os levou a se esconder nas folhagens. Não adiantou. Surge o deus contrariado com voz tenebrosa de senhor da justiça, voz pausada e grave como a do Cid Moreira ou de locutor de rádio AM/FM e os questiona: que é isso que fizeste? (Gên. 3.13). De nada adiantou a resposta. O casal foi banido do Jardim do Éden sob pena capital: és pó e ao pó voltarás (Gen. 3:19). Uma vez baixado à terra, e com poder e conhecimento de discernir o bem e o mal, o certo e o errado, o ser humano passa também a optar entre um caminho e outro e a se definir pela opção. São dois caminhos, a compreensão é dual. Esse dualismo metafísico se encontra em geral em toda sorte de literatura religiosa e não-religiosa ao longo da história humana. Vem sendo apenas reinterpretada. Todas as literaturas nacionais se afetam por ele em todas as épocas segundo as determinações materiais das sociedades. Como alguns exemplos, podemos citar: o herói homérico na Grécia, o herói conquistador romano, o herói-rei e o herói cavaleiro do medievo europeu, e mais recentemente, o herói romântico europeu; e aqui no Brasil: o herói-índio-europaico do nosso romantismo, e ainda mais recentemente, os mocinhos dos filmes e novelas. Os aspectos metafísicos e idealistas, o maniqueísmo simplista do dualismo filosófico presente na obra de Malaquias tem servido de núcleo de muitas e muitas espetaculares na história da literatura universal. Isso pode parecer uma fórmula ingênua, mas pode fazer sucesso (ou não), pode vender como água ou apenas servir de capim. Mas tudo bem, o que seria da bovinocultura sem o capim? Afinal, a fórmula estrutural da água potável é bem mais simples do que a do capim. E quem sobrevive sem água potável?
         A concepção de herói associada ao bem, à honra, ao mérito, à coragem, à justiça, à força, à perfeição, enfim, de herói bem definido do bem, dos fracos, dos oprimidos, embora tenha sofrido alguns abalos sísmicos significativos na escala “Richter”, continua em voga e com vigor aparentemente vitalício; é uma espécie de receita de bolo da vovozinha que todos conhecem e poucos abrem mão. O público já espera um herói sobregente e disposto a salvar a donzela, as pessoas, a situação, a nação, o mundo das terríveis maldades dos vilões. A mediação desse herói com a causa através de algum elemento simbólico e/ou personalidade orientadora é ocasional, mas não raro. Na peça de Malaquias, a lâmpada é o elemento simbólico, o gênio é a personalidade orientadora, já no texto de gênesis, o elemento simbólico é o fruto proibido da árvore do conhecimento, e a personalidade orientadora é a serpente que consegue libertar o ser humano da ignorância eterna. Observemos que, em essência, a semelhança entre a peça de Malaquias e a fábula bíblica é possível. O Grande Rei se configura na figura do deus-criador proprietário do Jardim do Éden__ pedaço de terra com altíssimo grau de valor na especulação imobiliária no mundo teatrologia dos espíritos (ou teatrismo da consciência); um sonho de lugar semelhante ao lugar dos sonhos de Nito.
         Os elementos simbólicos aparecem na literatura universal nas mais variadas formas: cetro, espada, cajado, altar, animal, vegetal, mineral etc. Temos o cetro, representante fálico, e o oráculo dos gregos; o cajado de Moisés e a arca da aliança dos hebreus; a espada scalibur   e a távola redonda dos ingleses; o tapete voador e a lâmpada mágica dos árabes; a planta entorpecente que constitui o segredo de Jurema no romance indianista de José de Alencar... As personalidades orientadoras aparecem também nas mais variadas formas: de deuses e de semideuses teomórficos, antropomórficos, zoomórficos ou astromórficos; de homens santos ou comuns; e mesmo de objetos; de entidades invisíveis; e de astros... O gênio Bluu e a lâmpada na condição de personalidade orientadora e elemento simbólico, respectivamente, ocupam um lugar significativo na peça de Malaquias. Sem eles a obra desmoronaria, pois se perderia o sentido e a arma do combate ao mal pelo bem. O autor seria forçado a buscar outros recursos criando outra personalidade orientadora e outro elemento simbólico; ou recriando-os intertextualmente a partir de alguma outra personalidade orientadora e de algum outro elemento simbólico já existentes na literatura universal tal qual ele fez com a lâmpada e o gênio.
         As outras personagens, que poderíamos considerar secundárias, funcionam na coadjuvância da composição do enredo. A vovó, os guardiões, os valetes, o vendedor de Relíquias, o irmão do rei... De tal forma que se algum deles for retirado da peça, a peça continua, não desmorona, embora com alguma perda de efeito expressivo. Mesmo Lito, na função de ajudante, colaborador ou fiel escudeiro poderia ser retirado da peça. Seria uma perda considerável, mas apenas parcial. A obra sobreviveria. Essas personagens citadas aqui nesse parágrafo funcionam como os termos acessórios na sintaxe da língua portuguesa com relação aos termos essenciais. Todos são necessários, mas só os essenciais são inevitáveis. Isto, claro, numa concepção tradicional de gramática.
         Outro aspecto que se pode observar na obra de Malaquias diz respeito ao título dado pelo autor. É necessário fazer uma sugestão de reordenação de alguns elementos do título, em vez de “O Grande Rei __ o poder, o sonho e a esperança”, seria “Nito: a esperança, o sonho e o poder”. O título dessa maneira contemplaria melhor a tessitura estrutural e o conteúdo da peça. A escolha original feita por Malaquias parece ser motivada por uma questão de efeito de sentido; uma peça com o título de “O Grande Rei” chama bastante a atenção, é mais atraente, desperta mais a curiosidade, e isso interessa ao escritor que quer ser lido. Mas, ao lermos a peça, percebemos que ela orbita em torno das preocupações e inquietações de Nito__ personagem central da obra e protagonista__, que em sonho se confronta com O Grande Rei __ seu antagonista __ face ao problema da falta de alguns direitos para as crianças na sociedade, ou melhor, face ao desrespeito a direitos já estabelecidos legalmente. Ora, sendo assim, obedecendo à relação de título com elementos nucleares de um texto, se percebe que a peça possui dois aspectos curiosos que promovem o diálogo de duas esferas da vida humana: o aspecto do ideal __ representado pelo sonho e por isso também poderia ser chamado de aspecto onírico __ e o aspecto do real __ representado pelas preocupações e inquietações de fundo social de Nito. O texto se configura em um sonho, um sonho de mudar a realidade, uma realidade de muitos. Temos então um diálogo em duas esferas: o sonho individual e a realidade social. O indivíduo e a sociedade em confronto; o primeiro armado com o sonho, o segundo entrincheirado na realidade. Devido a sua natureza tão adversa, o problema do indivíduo com a realidade social não possui solução possível na oposição do sonho com a realidade. Mas tal confrontação serve como estimulante para uma boa reflexão. Malaquias foi muito feliz ao abordar o problema a partir da ótica de uma criança, mostrando e alertando que as crianças também são sensíveis aos problemas causados pelos adultos, e que elas possuem uma maneira fantástica e peculiar de querer resolvê-los. Nisto Malaquias foi mais feliz do que no uso do intertexto com a lâmpada mágica de Aladim, já que tal influência da literatura oriental parece pouco sentida entres as crianças de hoje. Provavelmente o autor se remete ao modelo de sua infância. Mas isso pouco importa; é peso menor. O importante a salientar é que a dialética, embora fluida ou frágil, utilizada pelo escritor, do indivíduo e da sociedade aponta que Nito é a grande figura da peça, a grande personagem, já que ele representa a luta pelas mudanças sociais na realidade e/ou pelas mudanças reais da sociedade. O grande Rei representa os obstáculos, os entraves sociais na realidade e/ou os obstáculos, os entraves reais da sociedade. Nito alimenta a esperança que lhe sustenta o sonho, seu sonho nasce de sua esperança, uma esperança de intervir na sociedade se contrapondo ao poder estabelecido, ou melhor, tomando parte da relação de força existente entre o poder estabelecido por alguns contra a necessidade de mudanças de muitos. O Grande rei representa esse poder estabelecido, esse poder que Nito entre muitos desafia. Por isso justifico a sugestão de mudança do título prescrito pelo autor para “Nito: a esperança, o sonho e o poder”.
         Pelo que foi exposto se compreende que a peça de Malaquias se movimenta no ritmo trivial das agias de um córrego; de um córrego essencialmente preservado no tempo e no espaço sofrendo poucas recriações em seu curso. Daí a qualidade da água ser potável. Ele se agarrou a uma fórmula já consagrada e comum. Literariamente, pode não ter acrescentado muito em novidade, mas em nada perdeu. Recriou. E no mundo das letras, nada se perde quando nada se ganha, mas tudo se recria. Afinal, a novidade nem sempre representa um avanço. Por isso, faço questão de concluir essa análise dando um parecer favorável ao esforço do autor, por produzir uma obra como essa num momento como esse, em que o bom senso se tornou tão démodé. Que águas potáveis como essas continuem jorrando... para que a esperança na produção artística não seja um urubu disfarçado de papagaio.                                 

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Vida de Ninguém

Por Melquezedeque Farias Rosa

Acordo disposto e feliz
Mesmo com o estômago brocando o mato da fome e a esperança com cara de aborto provocado
Lavo o rosto alegremente com lágrimas dos meus próprios olhos
Me enxugo livremente com o ar calafriento que perpassa minhas macérrimas costelas
Procuro nas cavidades do ouvido e do nariz restos de comida que sobrou de ontem
Satisfeito, me armo com a falta de opção e me preparo para mais uma cruenta batalha
Contrariando as leis da Física, uso o vento como força motriz que equilibrará os meus passos cambaleantes
Vou em busca da maldade protagonizada por minha própria espécie
Munido de inconsciência e coragem, provoco um assalto nos olhares daqueles que comigo se incomodam
Sento à calçada e sinto seu peso pressionando minha bunda descarnada
Negocio com aqueles que querem pagar mais para que eu vá embora
Nesse leilão percebo toda minha desimportância
Meus dedos pontiagudos com unhas encaracoladas são alvos de freqüentes observações
Meu odor me faz vítima de todos os abusos contra meus direitos humanos
Já é tarde, e tudo que tenho já dá pra comprar um lugar na fila da porta dos fundos de um restaurante popular da periferia
De repente um milagre se perde e outra realidade aparece
Uma fila imensa de pessoas com bandeiras vermelhas e instrumentos de roça na mão passa pela estrada
Me esforço contra minha própria falta de força e me ergo como um herói baleado
Acompanho aquela gente que já me chama de companheiro
É uma possibilidade de fazer as pazes com a esperança e construir uma nova vida
Dias e dias de caminhada e finalmente resolvemos acampar à beira da estrada
Os motoristas, infringindo as leis de trânsito, passam hostilmente veloz e velozmente hostil
À noite tenho um pesadelo que estou sendo banqueteado pelo restante do grupo
Desperto desesperadamente tentando juntar as partes de mim mesmo
Vou me tranqüilizando aos poucos, mas, jurando sentir certo aroma de antropofagia no ar, fico a noite em claro
Na manhã seguinte, a morte visita o barraco vizinho e leva para o seu desjejum uma criança recém nascida
O velório é animado com a participação frívola e brutal de velhos conhecidos
A polícia se ordena sobre a multidão alvoroçada com seus cassetetes afiados
O comandante da tropa empolgado se comporta como se estivesse em uma missão patriótica
Os trabalhadores conseguem finalmente organizar uma barricada com seus próprios corpos
Eles tentam proteger dos defensores da sociedade privada tudo que lhes resta: suas crianças verminosas e suas mulheres enfeiadas pelas circunstâncias
Acocorado, bem na diagonal dos acontecimentos eu me posiciono tentando registrar tudo
Seria o primeiro, o último, o único texto da epopéia em que se traduziu minha existência
De repente o choque
Uma nuvem de poeira impura paira
Sons ferramentosos tinem e retinem
Ouvem-se tiros
...
Um lago vermelho sujo surge
...................................?
...................................!
É tarde
...
Sinto agora a dor da revolução proletária minguar do meu corpo e se plasmar à tinta de minha caneta
Em últimas reflexões concluo que não dá mais para recuperar:
o tempo,
a fé,
e a vida...
             
   

Circunvisão

Por Melquezedeque Farias Rosa

Berlin, Berlin
Construí um muro só pra mim
Hoje so vejo TV a cabo
Ao lado de um velho livro que diz:
“Eu só caminho à verdade da vida”
Escrito talvez por Aristóteles
Por ensinar passo a passo os passos de uma comédia
Quando desligo a TV me ligo no livro
Quando me desligo do livro me ligo a TV
Quando ligo a TV me desligo de mim
Tudo a cabo a todo cabo
!
Berlin, Berlin
Construí um mundo só pra mim.

Egogênese

Por Melquezedeque Farias Rosa

Não foi meu nascimento
Premonição de Nostradamus
Profecia de Isaias
Nem fatalismo histórico

Não foi meu nascimento
Produto de um orgasmo profundo
Palavra cabal de nenhuma divindade
Nem obra do acaso

Não foi meu nascimento
Predestinação do além
Lenda pagã oculta
Nem fruto de uma aposta
............................
..................................................
..............................
..................................................
Os deuses existirão
Sempre que os homens desistirem
Os homens existirão
Sempre que os deuses resistirem

Sedentarismo Burguês

Por Melquezedeque Farias Rosa

TV a cabo
Microondas
Máquinas de lavar-louças
Empregada doméstica
Cães na casinha
Travelling checks  
Sete mil e quinhentas calorias por dia

O Protesto

Por Melquezedeque Farias Rosa

De um lado palavras de ordem
Do outro cassetetes justapostos
De um lado necessidade e esperança
Do outro frieza e determinação
De um lado intervenção
Do outro adaptação
De um lado o estômago em questão
Do outro a pátria em perigo
De um lado a apreensão psicológica
Do outro a depreensão física
De um lado a reivindicação pela vida
Do outro a defesa da ordem
De um lado a impaciência desarmada
Do outro a paciência armada
De um lado a doença terrena
Do outro o antídoto infernal
De repente o choque
Sete mortos
Vinte um feridos
Setenta e três por cento das reivindicações garantidas
Quatro exonerações de cargos
E mais um acontecimento na História.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Contribuição à ciência da saúde

Por Melquezedeque Farias Rosa

         Embora pareça um ato per si sorumbático_ visto que é usualmente posto sub-repticiamente em prática quando na ausência da alteridade para compartilhar da libido que em nós se aflora com incerta periodicidade_ a auto-exploração individual corpórea da genitália se apresenta como uma modalidade de cópula capaz de promover um alento à tensão causada por um estado profundo e provisório de carência sociobiológica; além de desativar os mecanismos físicos propulsores da hipersensibilidade não volitiva, também funciona como mecanismo atenuante na psiquê quando esta se encontra sob estado de estresse condicionado pela ausência de atividade fisiológica de natureza supracitada. A automanipulação da zona erógena é, portanto, excepcionalmente homeopática se usufruída segundo posologia recomendada.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

A Concepção Sincrética de Inferno em “A Divina Comédia de Dante Alighieri”

Por Melquezedeque Farias Rosa

            Eu, filho de pais evangélicos xiitas, quando criança, ficava intrigado com os mistérios apresentados pelas leituras bíblicas que fazia, e que faziam para mim. Confesso que essas leituras também me faziam. Meu modo de pensar, naquela fase atravessada de inumeráveis contradições, foi forjado à temperatura da fé judaico-cristã ocidental proferida fervorosamente do púlpito da igreja por senhores e senhoras e jovens que pareciam sangrar em lágrimas em seus testemunhos e orações. Entre todas as intrigas provocadas pelas sagradas palavras, algumas invadiam, pilhavam e pirateavam meu imaginário; dentre elas as idéias de paraíso e inferno eram as que mais chamavam a atenção; elas retiniam em minha cabeça como marteladas em zinco. E é nesse momento que tive a oportunidade mediada por minha mãe de ler pela primeira vez A Divina Comédia” de Dante Alighieri.
Através de Dante percebi que o abacaxi era brabo. Sua obra somou algumas revelações mas multiplicou as intrigas. Os lugares espirituais são como uma moeda de muitas faces e cada qual com seu(s) valor(es) de uso e de troca. E Dante, como um ágil estrategista das letras, em sua época, soube explorar as diferentes maneiras de se conceber esses lugares. O resultado é uma sopa de letrinhas que selecionadas e combinadas revela o pensamento religioso medieval do século XIV. Dante faz um milk-shake de cristianismo com paganismo, de catolicismo com mitologia greco-romana; misturou crença e crendice, o religioso e o supersticioso. Sincretismo.
O inferno em Dante, razão específica desse trabalho, merece um olhar pluriangular; visto que a concepção de inferno apresentado n’A Divina Comédia é constituída pelo efeito simbiótico de seu sincretismo e da coexistência dos valores clássicos com os medievais. É necessário olhar esse inferno pelos ângulos com os quais ele era encarado por uma sociedade que, embora professante da fé católica, ainda não tinha largado, de todo, seus hábitos e valores pagãos, suas crendices mitológicas, suas superstições, e que estavam sendo reavivados pelo insurgente movimento renascentista. Esses valores e hábitos pagãos formavam o substrato de sua cultura, de sua história, de sua socialidade. Ao mesmo passo, Dante se antecipava a mudanças na face do mundo que ainda estavam por vir. Afinal, o renascimento estava acendendo sua tocha na era das trevas.
O período em que Dante viveu foi testemunha ocular do maior dilema por que passou a idade média: a guerra de trincheiras que se deu entre a fé e a razão e que se estenderia pelos próximos séculos até hoje. Por exemplo, há quem compartilhe da opinião de que o conservadorismo eclesiástico, principalmente por parte da igreja católica, é uma trava de mão para o desenvolvimento científico. Em contrapartida, há quem compartilhe da idéia de que o desenvolvimento científico ameaça a formação da moral religiosa. Mas essa é uma outra discussão. É uma particularidade, um aspecto da guerra de trincheiras entre fé e razão.
 Na época de Dante, a reutilização das artes greco-romanas incidia em uma forte ameaça aos valores cristãos católicos sedimentados na Europa. Basta lembrar que o ideal humanista apregoado pelos renascentistas era presumivelmente olhado de soslaio pelos representantes da igreja e por aqueles que defendiam seus dogmas como quem esconde a mão da palmatória. A ressurreição consciente do passado clássico, visto como modelo de civilização, era uma subversão, no sentido em que isso era diametralmente oposto ao que era ensinado pela doutrina católica. O modelo a ser seguido, segundo a igreja, seria o do paraíso, o do mundo celestial, o da habitação divina. Mas esse lugar etéreo para ser alcançado era preciso uma vida conforme os dogmas da igreja, e mais, aos desobedientes, aos pecadores, aos hereges, pesava uma punição severa, de acordo com o peso e medida de suas ações em vida. Essa punição era o fogo do inferno e seus funcionários com seus  garfos, tridentes, objetos cortantes, perfurantes que pareciam ciscadores de folhas caídas. Enfim, na concepção religiosa católica medieval, se refletia na terra o modelo de organização do além-vida. Isso era, de fato, diametralmente oposto ao que era apregoado pelo renascimento, que via no passado dos próprios homens um modelo de civilização a ser buscado. Estava feito o dilema.  
Essas duas visões de mundo são os ingredientes do milk-shake dantiano em sua “A Divina Comédia”. Na simbiose dessas visões, que eu chamo aqui de sincretismo, já que não encontrei termo melhor, Dante apresenta um inferno atravessado por influências cristãs (católicas) e pagãs (mitológicas). Do intercruzamento e do intracruzamento[1] dessas influências Dante reúne em sua obra os valores plurissignificativos de sua época, retratando e conservando através da arte seu tempo e tornando-se provavelmente o maior escritor-poeta italiano da idade média.
Na epopéia de Dante estão reservadas cadeiras para os dois lados que constituem a concepção de inferno nela apresentada. Uma leitura precipitada de “A Divina Comédia” poderia levar à proposição de que Dante Rompe com o dilema instaurado em sua época entre fé e razão. E Assim ele estaria seguindo um caminho conciliador dessas duas perspectivas. No entanto, uma leitura mais cuidadosa, levando em consideração o contexto geral em que a obra se insere, leva a pensar não deve ter sido essa sua preocupação. Ele habilmente mergulhou sua história de amor platônico por Beatriz no mar de coisas que aconteciam a sua volta. Falando assim pode até parecer simplismo, mas não o é. É bom considerar que o segredo dos bons escritores não está apenas no ‘que ele faz’ mas também__ e me arrisco a dizer, fundamentalmente__ no ‘como ele faz’. Dante era um autor que vivia e vivenciava seu tempo. Ele soube ler bem os acontecimentos e fenômenos circunjacentes e tratá-los literariamente.
É importante ainda considerar que Dante não fez através de “A Divina Comédia” um movimento de ruptura com os valores de sua época; uma compreensão assim seria novamente produto de uma leitura precipitada. O bom senso leva o leitor cuidadoso a compreender Dante como um homem de seu tempo, envolvido num dilema de seu tempo, e nesse sentido nem era conciliador nem rompedor de valores. Um homem que, como já foi dito, sabia ler o que acontecia a sua volta e lidar habilmente com isso em sua literatura.
Desta forma, a concepção de inferno apresentada em “A Divina Comédia” por Dante derivava da concepção ou das concepções de mundo que (co)existiam no alvorecer do período renascentista, e tinha(m) suas determinações num contexto mediato, isto é, num contexto constituído pelo histórico, pelo sociológico, pela materialidade, enfim, pelas relações sócio-histórico-materiais do fim do século XIII e começo do século XIV, período em que viveu o escritor-poeta. Seguindo essa acepção, pode-se dizer que a concepção de inferno apresentada em “A Divina Comédia” não é apenas e singularmente de Dante, mas também de seu tempo e sociedade. Reiterando, o inferno de Dante é, assim, o inferno de seu tempo e de sua sociedade.
O mundo de Dante era um mundo em transição. Na verdade todos os mundos são mundos em transição; entendendo transição como um movimento irrefreável de natureza dialética em contraponto direto e indiscreto ao movimento estático de natureza metafísica. Mas mundo de Dante tinha uma peculiaridade, uma marca, uma característica interessante. A transição se dava a partir de uma retomada do passado para a superação do presente. Ironicamente, o retorno indicava um avanço. E nesse sentido, o passado serviria para a reformulação do presente e indicaria os caminhos para o futuro. O problema era que na sociedade de Dante presente e futuro já estavam prefixados pelos dogmas católicos apostólicos romanos judaico-cristãos ocidentais. É esse o mundo de Dante. Um mudo em que as forças transformadoras ecoavam do passado e as conservadoras reagiam do presente. E é no calor desse momento que se aquece o poema épico de Dante; ou seja, é nesse choque de concepções que Dante, embora católico confesso e altivo, produz aquela que se tornaria uma das mais referenciadas obras da literatura universal, aproveitando os elementos constituintes da(s) ideologia(s)[2] de seu tempo.
No processo de facção de sua epopéia, Dante também não foi neutro, imparcial. A influência teológica dele lateja em versos cujo vocabulário é constantemente impregnado de termos, palavras que referenciam a simbologia eclesiástica da idade média. A formação religiosa de Dante antecede as influências das idéias renascentistas, ela foi a base da formação moral dele. Logo, ele puxava por esse seu lado católico apostólico romano de ser tão vigorosamente vigente na sociedade européia de então. Mas isso não o impediu de apresentar em sua poética o barulho dilemático de seu tempo. E é isso que faz dele um grande escritor; o fato de construir uma ficção que mexe até hoje com o imaginário das pessoas e que tem como pano de fundo o fluxo de idéias de seu tempo, de sua sociedade. Ou será o contrário? Ou seja, ele retrata o fluxo de idéias de seu tempo, de sua sociedade através da construção de sua ficção. Bem, isso depende do olhar que se dê. Talvez, ambas as explicações sejam complementares. O mais relevante é que Dante faz isso sem querer ser conciliador, rompedor ou imparcial. Dante não prescreve. Ele não escreve receitas para botecos do futuro. Sua arte em “A Divina Comédia” nem é pau, nem é pedra, nem é o fim do caminho; é água para todos os meses do ano. E sobrevivente ao tempo.
A captura, sem pieguismo, dos valores de uma época é uma tarefa árdua e complexa. E dar um caráter literário a esses valores é uma tarefa ainda mais árdua e complexa. E ir ainda mais adiante e apresentar as concepções e idéias elementares coexistentes nessa época é uma tarefa imensurável em sentido histórico, sociológico, cultural etc. e sobretudo literário. Dante fez exatamente isso ao tematizar literariamente sobre as idéias de inferno, purgatório e paraíso, levando em conta não apenas a concepção cristã, católica dominante naquele momento mas também a concepção pagã, mitológica da herança greco-romana clássica.
A concepção de inferno, de purgatório e de paraíso não se encontra em Dante apenas nos livros que recebe esses temas como títulos, pelo contrário, está no conjunto da obra. E tratando-se do maniqueísmo metafísico religioso, é possível postular que a afirmação de X é inversamente o valor de Y, e vice-versa, e entre um e outro há infinitas mediações. Trazendo a claro, quando Dante guiado por Virgílio passa pelo inferno e o descreve, sua descrição ao lado de Virgílio revela as pedras que servem de calço para a concepção de inferno apresentada. Que pedras são essas? O cristianismo católico e a mitologia grega. Presumivelmente, esses dois elementos constituirão a concepção de purgatório e de paraíso constante nos outros dois livros.
O leitor pode ainda não ter entendido a equação postulada acima. Pois bem, a inversão do valor de Y pela a afirmação de X acontece porque esse X inversamente pressupõe Y, e Y inversamente pressupõe X. Se se concebe que no universo há uma luta irrefreável entre o bem e o mal, isto é, entre elementos opostos em sua natureza, a descrição do bem vai ser o inverso da descrição do mal, e entre um e outro haverá infinitas mediações. Por exemplo, assim como entre o homem e Deus está o Diabo, entre o céu e a terra está o inferno, e entre o inferno e o céu está o purgatório. E como num jogo de espelhos côncavos e convexos, assim como um se oculta no outro, um se revela no outro.
Dando ainda mais detalhe aos dois parágrafos anteriores, a idéia de paraíso enquanto lugar espiritual, ou morada de Deus(es) situado nas alturas, no céu, no olimpo pressupõe que o inferno enquanto lugar espiritual esteja no interior da terra, nas profundezas da terra, e vice-versa. Isso devido à natureza de cada um desses lugares. O lugar do bem só deve ser em nível acima do lugar do mal, e vice-versa. A natureza inversa de ambos os lugares permite a compreensão da equação. Se um representa o bem pressupõe que outro seja o mal, se um é um lugar alto pressupõe que o outro seja baixo etc.
Na obra de Dante, Beatriz ao ver seu amado em perigo aqui na terra, desce do céu, vai até o limbo pedir a Virgílio que o ajude. Mais adiante, Virgílio propõe a Dante uma viagem pelo interior da terra, e é assim que Dante começa sua jornada pelo mundo subterrâneo do inferno, passando pelo purgatório e finalizando no paraíso. Nessa longa jornada aparecem elementos da mitologia grega, do mundo greco-romano e elementos do cristianismo católico tais como monstros e pessoas. Os diálogos misturam o clássico e o medieval. As próprias descrições de Dante enquanto personagem-protagonista, embora predominantemente teológicas, são impregnadas de elementos da cultura clássica. E até mesmo as falações das outras personagens são carregadas de elementos das duas perspectivas.
O conjunto da obra aponta que Dante sabia o que estava escrevendo e o que vislumbrava. Seu trabalho de tessitura dos versos, dos temas, do ritmo e da rima faz com que a obra tanto possa ser compreendida pela sua totalidade como por cada uma de suas partes; visto que cada parte pode servir como metáfrase[3] uma da outra, embora a primeira opção, a de compreender pela totalidade, seja a mais prudente.
Finalizando, a concepção de inferno apresentada em “A Divina Comédia” por Dante tem seus traços delineados não apenas no primeiro livro, mas em toda obra. E em toda obra o inferno é concebido numa perspectiva teológica e mitológica, embora a primeira predomine provavelmente devido à formação moral religiosa do autor e das determinações sociomateriais e históricas do período. Mas essa predominância não anula o caráter híbrido de influências em que concepção de inferno em Dante se apóia, rotulada aqui como sincrética justamente porque mistura pelo menos duas perspectivas bem diferentes: a teológica e a mitológica.






*Observação: esse texto foi apresentado como atividade de expressão escrita de literatura na aula da Professora Gláucia Machado da FALE-UFAL (Faculdade de Letras da Universidade Federal de Alagoas). E teve como razão: um tributo aos colegas de sala.



[1] Intercruzamento e intracruzamento porque o cruzamento das influências teológicas e mitológicas na concepção de inferno em “A Divina Comédia” não ocorre apenas pela aproximação externa entre as duas concepções de mundo, mas também pela aproximação interna. A relação das duas perspectivas é por dentro e por fora. É, portanto, uma relação imbricada, interseccionada. Se misturam e se separam. Formam uma dualidade que convivem encarnada no mesmo corpo. E assim Dante reproduz na obra os tapas e beijos que se sucediam entre o cristianismo católico e a herança pagã greco-romana na realidade de seu tempo e sociedade. Ele faz isso deixando de lado apenas a violência dos tapas  e os estalos dos beijos. 
[2] O termo ideologia aqui está sendo usada como conjunto de idéias pertinentes a uma determinada classe, época ou concepção filosófica. 
[3] Esse termo, metáfrase, foi usado por analogia a paráfrase e metalinguagem. Com o sentido de que uma parte explica a outra, mas sem necessariamente pelo seu verso, mas pelo seu inverso. Portanto não é uma paráfrase, nem tampouco uma explicação no sentido aferido ao que seria uma metalinguagem propriamente. É uma explicação baseada em pressuposição seguindo a equação postulada. Nas três partes da obra a elementos que ocorrem recursivamente que permite tal pressuposição a partir daquilo preconcebido no mundo exterior, visto que os temas são conhecidos do leitor.    




Pobres Diabos

Por Melquezedeque Farias Rosa

Pobres diabos
(série: contos tristes)


            Raimundo e Severino, irmãos gêmeos, que mesmo por acidente tendo nascido no dia de Cosme e Damião não lhes herdaram os nomes, nasceram apressados, dois antes dos nove, quando sua mãe tombou do cabo da enxada no aceiro da mata já no final da jornada. Morreu de parto a coitada!
            Raimundo e Severino, precoces, começaram na labuta aos quatro anos de indigência e aos 18 tinham a aparência de 30 e o corpo de 12. Via-se neles 14 anos de quase-vida: rosto ressequido, pele rugosa, mãos espancadas e calejadas, unhas grossas que nem de tatu peba, orelhas abanadas, beiços sulcados, olhos fundos no fundo, braços e pernas latanhados, fronte curvada e dobrada, além de um andar corcundante e duas saboneteiras fixadas em suas clavículas.
            Um dia, em uma de suas idas domingueiras à feira livre de Murici, Severino foi comprar tibiro, pissirica e outros suprimentos rotineiros; enquanto Raimundo foi tomar uma pinga no boteco da linha do trem, lá bebeu, fumou, pigarreou, apalpou nos peitos de umas quengas, arrumou uma briga e.........por sorte.........morreu.........esfaqueado, mas não antes de proferir suas últimas palavras:

__ Pobre do Severino! Pobre do Severino!

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Fábrica de homens

Por Melquezedeque Farias Rosa

_Não! Você não serve para o serviço. Passe no setor de recursos humanos e se acerte com o contador. Você tem oito ou dez minutos antes que ele saia. “Próximo, venha o próximo”. Gritou a chefe de serviço de dentro de seu escritório improvisado em um galpão, que servia de refeitório nos dias úteis, nos fundos da empresa de encaixotamento de peixes salgados do distrito industrial de Maceió.

Zequinha, como ficou batizado pelos companheiros de trabalho, ainda quis apelar e até ensaiou uma sopro de fala erguendo levemente a mão na intenção de um pedido de justificativa. Mas em seu gesto esmoreceu a meio caminho envolvido numa sensação de escravo que recebera uma liberdade forçada, uma alforria, sem carta, acompanhada da necessidade de ser preso; uma necessidade odiada de coração mas que vinha lá do sentimento mais profundo e depurado do estômago. Sentimento onde se encontra a raiz primitiva da consciência humana.
Dobrou-se à saída mas não antes de dar um ultimo olhar bandeado  para aquela burocrata que uma semana antes havia exigido dele mais de quatro horas de espera e mais duas horas ou mais em testes físicos, psicotécnicos e entrevistas por um emprego de salgar e encaixotar peixes. Ainda fedendo a escamas e salmouras e todo ardido de sal grosso e fino retirou-se numa mistura mascada de rancor, impotência e tristeza. Passou pelos outros da fila que pareciam atravessar-lhe com olhares de lança afiada, olhares que continuariam lhe flechando as costas à medida que se afastava por entre as mangueiras que separavam o refeitório do setor de recursos humanos. Aqueles olhares que também deixavam transparecer na sua fundura a razão marginal dos esquecidos, dos ignorados, dos desvalidos e uma fagulha de esperança pela sobrevivência, mesmo que em condições nada próprias para o resto de dignidade que se lhes fugia a cada porção de peixes salgada e encaixotada.
A medida que foi passando pela fila ainda ouviu alguns comentários que se distinguiam entre eles. Ouviu o Rogério dizer “Toma! Eu não te disse para ser mais rápido carregando as caixas! A Rita disse “Tem nada não, mô fi, as coisa s’arranja”. A Dudé disse “E aeh, explicadinho, pra que serve seus estudo agora, hein. Você num sabe tudo, porque num soube segurar o emprego?” A Ciça disse “Ligue pra ele não, ele tem é inveja de você”. Ouviu ainda mais alguns e diversos comentários mas deu pouco ouvido como que estivesse descentrado do mundo imediato. Sentia-se um projeto de fracasso personificado; Um catador de migalhas de mendigo. E entre os comentários ouvidos, os bons foram os que mais o feriram por denunciarem com cortante honestidade sua inutilidade enquanto gente. “Sou um incapaz, um inepto, um fracote”, pensava ele lembrando de sua condição física desprovida de força e preparo para o tipo de trabalho do qual acabara de ser dispensado. Aquilo mexia com sua condição de homem, que nas palavras de seus pai tinha a ver com força, coragem e disposição para o serviço, seja ele qual for.
Mas ao chegar embaixo da segunda mangueira, já se conformando com o acontecido lembrou que tinha feito o melhor de si para provar-se perante as exigências feitas naquele ambiente. Lembrou que não fez corpo mole ao entrar na câmara fria para buscar os peixes que lá estavam congelados e levá-los para as esteiras de salgamento onde mulheres ligeiras como que assustadas com facas afiadas à mão lapidavam cada posta como se fossem brilhantes diamantes e garimpavam ovas das vísceras como se aquelas fossem belas pepitas de ouro. E quando, por exigência, juntamente com as mulheres, estripava, desovava e salgava peixe num ritmo automático levado pelo movimento da esteira elétrica que não parava de levar a outras secções da linha de produção as preciosidades ali cuidadas.
Nesses momentos de ação contínua, de estripação, de desovação, de salgação, todos atendiam, controlando até as pestanejadas, às orientações da esteira como se essas lhes chefiassem a um férreo silencio. Eram todos extensões orgânicas de uma máquina voraz, de uma peça de metal engrenada por um motor indisposto a uma pausa, a um fio de prosa, a uma simples troca de olhar. Parecia controlar até as puxadas de fôlego. Se metia no corpo de cada um; nos rins retinha a produção de urina; nas tripas, a de fezes; na boca se materializava em saliva que segurava a sede; na cabeça era dormência, esquecimento das horas,  espantalho dos pensamentos mais simples; no coração sedava a angústia que se acumulava para o final da jornada.
Tudo ali se condensava naquela esteira. Ela era como o corpo de um polvo mecânico cujos tentáculos se espalhavam para todos os lados; para lá e para cá. A câmara fria era o tentáculo que congelava os ânimos durante retirada dos peixes, ainda frescos e tesos como madeiras secas, com o auxílio de uma pá que parecia ranger os dentes a cada cavada no gelo escama. Mesmo as botas brancas de borracha pareciam lamuriar-se com a utilidade que lhe fora dada e se agarravam aos pés do cavador como que querendo fugir-se do contato hostil do piso. O homem que operava naquela geleira, apresentando sinais claros de uma patologia pulmonar, e por isso contava freqüentemente com a solidariedade de alguns carregadores que lhe faziam o ofício para presevar-lhe a saúde. Mas também contava com má fé daqueles que queriam surrupiar-lhe o cargo. Acabou mandado embora por justa causa antes daquela semana se encerrar acusado de ter mentido sobre seu estado de saúde para entrar no emprego. Isto o levou a despejar cinco anos de indignação guardada, e com a mesma pá com a qual acariciava o gelo que o adoecera, arrebentou tudo que via pela frente até ser contido a cacetadas pelos capachos da empresa.
Os caixotes uma vez empurrados pela força braçal dos homens logo os automatizavam e assumiam o controle do movimento que por sua vez se sincronizava com o movimento da esteira sendo elos de seus tentáculos. E assim arrastavam os homens até os carrinhos de transporte de onde o fenômeno continuava.
Os caixotes e os carrinhos de transporte operavam os homens com uma habilidade invejável e respeitável; levavam-nos à esteira elétrica munidos por forças próprias dos desejos maquinais da indústria, e com todo cuidado punham o interesse pelos peixes na mesma proporção do desinteresse pelos homens. Afinal, se os homens eram dispensáveis por justa-causa, os peixes só o eram por  causa-justa: o lucro, a acumulação, a produção e reprodução de capital.
E refletindo todas essas coisas, Zequinha já acomodado sobre o lombo de uma raiz negra e amarelada da mangueira, exposta como uma fratura da terra, se desculpava consigo próprio. Se indagava: “Não teria a peste da burocrata-chefe me libertado do controle tentacular da esteira?” “Ou não teria a esteira ordenado a ela a minha dispensa por julgar-me em desafino e em descompasso com seu som e ritmo?”  “Talvez os peixes tenham me denunciado com seu olhar morto fingindo-se.” “Não importa a resposta, eu não vou sair quebrando coisa alguma, agora que descubro uma estranha sensação de liberdade na infelicidade de uma rejeição.”
Esse devaneio é interrompido com a saída cautelosa do contador. Zequinha ainda pensa em abordá-lo, mas desiste logo em seguida. Acaba se amparando na árvore, se mimetizando com ela para não ser percebido; e em seguida, sai sorrateiramente continuando suas reflexões... Centrando atenção no carregamento dos caixotes já prontos para os caminhões que os transportaria para um armazém provavelmente no Jaraguá, bairro do porto de onde seriam embarcados para alguma parte do mundo...
E Zequinha não voltou para receber seus ganhos? Pode estar se perguntando o leitor. Bem, é óbvio que sim. Quem planta quer pelo menos um pouco da colheita. Mas o seu maior ganho foi descobrir que a indústria tinha lhe fabricado de velho garoto recém portador de carteira reservista em homem novo feito de história que faz história... Isto sem se abandonar, sem se romper estanquemente... E assim, o novo nasceu do velho e o velho continuou no novo...