Por Melquezedeque Farias Rosa
A obra de Malaquias é uma peça que trata da questão dos direitos sociais básicos para a infância: educação, saúde, lazer, esporte e cultura. A peça está dividida em dois atos e se encerra na abertura de um terceiro. A questão é tratada do ponto de vista de uma criança, Nito, que é a principal personagem e protagonista. A peça se configura num sonho dessa personagem no qual se apresenta um cenário mágico, fantástico para onde se transfere os problemas da realidade social relativos aos direitos básicos supracitados. Tais problemas afligem Nito, o inquietam, o preocupam, e despertam nele dois sentimentos: o desejo de ser adulto para encontrar soluções e a esperança por mudanças concretas. E é justamente essa esperança que o induz ao sonho. Em sonho, ele, ao esfregar uma lâmpada mágica encontrada em sua caixa de brinquedos, se depara com um gênio, o gênio Bluu__ outra personagem importante na peça por representar o conhecimento __ que lhe concede três desejos. Nesse primeiro momento, Nito faz apenas um pedido: o de ser adulto, e é levado pelo gênio para um lugar __ A cidade dos Pequeninos__ governado por um rei tirano __ O Grande Rei __ que no passado havia se apoderado da lâmpada mágica e através de seus pedidos centralizado todo poder e conhecimento em suas mãos e transformado todas as crianças fisicamente em adultos. Ao chegar a esse lugar, Nito e o gênio Bluu são perseguidos por causa da lâmpada pelos guardiões d`O Grande Rei. Em fuga, Nito se separa do gênio Bluu e conhece Lito, de cuja lâmpada No passado, O Grande Rei havia se apoderado, ambos se tornam companheiros de jornada e amigos. Os dois conseguem enganar O Grande Rei confundindo a lâmpada verdadeira com uma falsa trocada com Sales, um vendedor de relíquias. Na confusão, Nito esfrega a lâmpada mágica verdadeira e, perante O Grande Rei e seus guardiões, seus valetes e seu irmão Junta, faz os dois pedidos que lhe restam ao gênio Bluu: o retorno da infância aos adultos transformados em criança com acesso ao direito à educação, saúde, lazer, esporte e cultura e a libertação definitiva do gênio Bluu para que ele, enquanto representante do conhecimento, nunca mais voltasse a ser usado para o mal como fora no passado ao cair nas mãos d´O Grande Rei.
A peça é uma água, uma água potável. À primeira lida, claro. Afinal, quem sobrevive sem água? Sem água potável, claro. Afinal, quem no mundo intelectual das letras se assegura simplesmente numa primeira lida? Eu não, claro! A água produzida por Malaquias vai muito além da fórmula H2O, como veremos. O escritor é uma fonte de água literária jorrando palavras por onde passa, ou melhor, por onde é lido. Quando é lido. Ambíguas minhas palavras, mas não sem sentido, posso jurar. Num mundo onde os recursos minerais estão sob constante ameaça de escassez, água potável costumeiramente tratada como lixo passa a se configurar cada vez mais como luxo. Na literatura, a relação não é diferente. Num universo de produções dedicadas a futilidades, que vão desde propagandas que estimulam o consumismo desenfreado a letras de música que fazem da bunda o símbolo máximo da irracionalidade, o escritor é aquele ousado que oferece logo as duas faces, e sua literatura é a prova de seus crimes. Por isso Malaquias, escritor, essa fonte criminosa de palavras lixuosas, (lixo e luxo em profusão), merecerá como prêmio as pedras que lhe apedrejarem. Sem lixo não há luxo e vice-versa. Por isso, ao escritor é sempre válido o seguinte: a pedrada mais forte costuma ser sempre daqueles que mais gostam e daqueles que menos gostam dele. Isto é o que incentiva o escritor a ser quem ele é: um estranho entre os semelhantes. Nisso o trabalho de um escritor acaba indo muito abaixo de uma questão de concordância/discordância e se reduz a uma questão de gosto, de desgosto, de mau-gosto, de contragosto e d tira-gosto. A questão estética se torna prato fino de um restaurante elitista a petisco de barzinho pega-bêbado. Num universo cheio de água clorificada por causa da poluição dos aqüíferos, ou melhor, glorificada pela estética dos sem-gosto, água potável é tudo que precisamos para matar a sede; e nessa acepção o trabalho de Malaquias é mais do que válido, é superváliso; prova que o pulso da esperança ainda pulsa no horizonte da literatura brasileira, nessa supérflua sociedade de consumo onde cada vez mais se (a)costuma a se reconhecer a arte pelo valor de troca que ela puder exprimir no mercado.
Oscar Wild, Em seus reboliços proféticos sobre o individualismo anarquista, concebeu a obra de arte em seu livro “A Alma do Homem sob o Socialismo” (p.45) como “o resultado singular de um temperamento singular”; com isso ele quer dizer que a obra de arte não depende do que a sociedade quer, mas do que o autor é. É impossível não reconhecer que essa concepção de arte é tão brilhante quanto ingênua. Brilhante pela ousadia de pressupor um indivíduo imunizado das influências sociais, e ingênua pela mesma razão. Claro que Oscar Wild estava se referindo ao escritor numa sociedade anarquista, socialista, emancipada, sem classes, e, naturalmente, não mercantilista. Mas isto não retira o caráter irredutivelmente social da produção artística. Tanto numa possível sociedade anarquista quanto na sociedade capitalista vigente, o escritor é aquele que produz metano, ou seja, que solta pum, tal como os outros. E metano humano não se produz sem combustão, e combustão não se produz sem ingestão, e ingestão não se faz sem a necessidade de matar a fome, e não se mata a fome sem alimento, e não se consegue alimento sem participação na sociedade. E nossa participação na sociedade é conditio sine qua non para aquilo que produzimos, inclusive a arte. Quando escrevemos quer queiramos quer não a alteridade está presente. A sociedade participa de nosso ato de produzir uma obra. Nisso pouco importa a forma de sociabilidade, se socialista ou capitalista. A dialética do sujeito com a sociedade é indissolúvel. O homem é um ser social. Mas, o que o brilhantismo e a ingenuidade da concepção de obra de arte de Oscar Wild tem a ver com a peça de Malaquias? Tem a ver não pelo seu verso, mas pelo seu inverso. Bem vejamos a partir dos próximos parágrafos.
Ao transferir os problemas da sua realidade social e para um sonho, Nito também transfere as determinações desses problemas identificadas por ele como sendo de caráter governamental; ou mais especificamente de poder governamental associado à burocracia motivada por falta de vontade política. Claro que essa compreensão não é feita de maneira tão categórica por Nito, afinal estamos falando de uma criança, mas se compreende assim pela maneira como ele expõe sua leitura do mundo em que vive e pela maneira como ele encara a causa dos problemas. Causa essa configurada na principal personagem-antagonista da obra: O Grande Rei. Devemos ainda salientar que Nito é uma construção, uma personagem, e assim como a obra é uma ficção; e o autor estar sempre presente em sua ficção, quase sempre nas entrelinhas dela e de vez em quando saltando claramente a sua superfície. No caso específico da obra “O Grande Rei”, o autor (a)parece junto com a personagem Nito como se ela fosse sua porta-voz. O cenário ou ambiente escolhido pelo autor, um mundo imaginário, e o meio de acesso a esse mundo, o sonho, que sugere fuga da realidade e não o é, assim como a intertextualidade com a literatura árabe na figura de um gênio da lâmpada com nome sugestivo da cultura em remissão, tudo isso é apenas uma recriação no reaproveitamento de elementos da literatura universal a serviço do objetivo central da obra: fazer uma reflexão sobre a problemática dos direitos básicos da criança como diz o próprio autor logo nas primeiras linhas da apresentação (p. 47): A peça tem a finalidade de mostrar de forma lúdica as preocupações com o futuro das crianças. Nessa acepção, o autor deixa clara a função de sua arte: conscientizar e intervir, isto é, incidir na consciência do público que dela se apropriar. Malaquias, dessa maneira, é um lúcido produtor de metano, desses que não são mesquinhos para negar um pum a um amigo como eu, por exemplo; nem mesmo na hora do almoço. É um escritor que visa o público ou vislumbra sua presença. Segue à risca a idéia de que “o artista vai aonde o povo está” . Normal. Isso é o avesso da concepção de Oscar Wild. Ou melhor, se relaciona com a concepção de Oscar Wild pelo seu inverso, e a arte em vez de ser “o resultado singular de um temperamento singular”, passa a ser o meio plural para um temperamento plural, ou mais que isso, a pluralidade no meio na pluralidade do temperamento. Se no caso da concepção de Oscar Wild, a singularidade diz respeito à natureza da construção da obra e do temperamento do individuo, no outro caso a pluralidade diz respeito aos atravessamentos da sociedade no ato de produção de uma obra por um sujeito. E assim, sujeito e sociedade não se excluem no ato da produção; são inexcludentes.
Contudo, considerando as boas intenções do autor em produzir uma obra reflexiva e crítica, é possível identificar nela aspectos metafísicos e idealista que põem em questionamento se o autor atingiu sua finalidade a contento. O dualismo posto da velha idéia de luta do bem contra o mal e o maniqueísmo configurado nele aproxima a peça duma espécie de teatrologia dos espíritos ou teatrismo da consciência. O bem representado por Nito e Lito, que carregam nas costas o fardo da responsabilidade pela emancipação dos pobres e oprimidos; e o mal representado por O Grande Rei e seu bando, que são responsáveis por toda sorte de infortúnios, de opressão e atacam em três pontos fulcrais: totalizam poder assumindo o governo da cidade dos pequeninos, totalizam o conhecimento se apoderando da lâmpada mágica, e castram a inteligência dos oprimidos impedindo que se desenvolvam no processo natural de crescimento e despertem por seus direitos. Nito e Lito surgem como uma reduplicação consagrada do herói-mocinho e seu ajudante (colaborador, fiel escudeiro). O grande Rei e seu bando são a multiplicação do vilão-bárbaro das forças do mal (das trevas, das profundezas da terra); nada há de mais metafísico do que essa velha fórmula-clichê consagrada ao longo da história da literatura. É uma fórmula que se estabelece convincentemente até na literatura religiosa dos chamados livros sagrados. No Éden, por exemplo, temos o confronto dos primeiros seres humanos, segundo a mitologia hebraica, com a tentação da serpente. Adão e Eva eram o elo que separava o bem do mal, ou melhor, o elo do bem mais próximo do mal. Eram puros, inocentes, ignorantes, crianças divinas correndo no mato com as vergonhas de fora, à mostra no melhor estilo naturista. A luta do bondoso e justiceiro Jeová contra o terrível e persuasivo Lúcifer até então havia se dado frontalmente. O que separava deus do diabo era a incompreensível bondade do primeiro e a incrível maldade do segundo. E o que aproximava Adão e Eva do deus hebraico era justamente o que aproximaria do casal a serpente: a pureza, a inocência, a ignorância. No confronto direto bem sabemos que o anjo negro se encontra impotente perante o onipotente anjo branco. Então a audácia e a persuasão do primeiro venceram uma batalha contra a bondade e o conselho do segundo. A serpente fez o casal donzelo comer da árvore proibida do conhecimento fazendo-lhes promessas e juras. Ela sabia que comendo da árvore o ser humano passaria a questionar, a refletir sobre sua condição existencial, e por motivos de questionamento e reflexões críticas o anjo de luz já havia sido expulso do reino celestial sob as mais terríveis acusações, acusações típicas de quem para si quer todo poder e conhecimento e não aceita dividi-los de forma alguma. E quem insistir ou se rebelar já sabe, é pena de morte na certa, sem balançar as pestanas. Não deu outra, Adão e Eva se deliciaram exaustivamente no pecado mortal da maçã proibida, e já com conhecimento de discernir o bem e o mal, o certo e o errado sabiam que seriam tratados de forma severa pelo criador. O temor, o medo, talvez o pavor da punição inevitável os levou a se esconder nas folhagens. Não adiantou. Surge o deus contrariado com voz tenebrosa de senhor da justiça, voz pausada e grave como a do Cid Moreira ou de locutor de rádio AM/FM e os questiona: que é isso que fizeste? (Gên. 3.13). De nada adiantou a resposta. O casal foi banido do Jardim do Éden sob pena capital: és pó e ao pó voltarás (Gen. 3:19). Uma vez baixado à terra, e com poder e conhecimento de discernir o bem e o mal, o certo e o errado, o ser humano passa também a optar entre um caminho e outro e a se definir pela opção. São dois caminhos, a compreensão é dual. Esse dualismo metafísico se encontra em geral em toda sorte de literatura religiosa e não-religiosa ao longo da história humana. Vem sendo apenas reinterpretada. Todas as literaturas nacionais se afetam por ele em todas as épocas segundo as determinações materiais das sociedades. Como alguns exemplos, podemos citar: o herói homérico na Grécia, o herói conquistador romano, o herói-rei e o herói cavaleiro do medievo europeu, e mais recentemente, o herói romântico europeu; e aqui no Brasil: o herói-índio-europaico do nosso romantismo, e ainda mais recentemente, os mocinhos dos filmes e novelas. Os aspectos metafísicos e idealistas, o maniqueísmo simplista do dualismo filosófico presente na obra de Malaquias tem servido de núcleo de muitas e muitas espetaculares na história da literatura universal. Isso pode parecer uma fórmula ingênua, mas pode fazer sucesso (ou não), pode vender como água ou apenas servir de capim. Mas tudo bem, o que seria da bovinocultura sem o capim? Afinal, a fórmula estrutural da água potável é bem mais simples do que a do capim. E quem sobrevive sem água potável?
Contudo, considerando as boas intenções do autor em produzir uma obra reflexiva e crítica, é possível identificar nela aspectos metafísicos e idealista que põem em questionamento se o autor atingiu sua finalidade a contento. O dualismo posto da velha idéia de luta do bem contra o mal e o maniqueísmo configurado nele aproxima a peça duma espécie de teatrologia dos espíritos ou teatrismo da consciência. O bem representado por Nito e Lito, que carregam nas costas o fardo da responsabilidade pela emancipação dos pobres e oprimidos; e o mal representado por O Grande Rei e seu bando, que são responsáveis por toda sorte de infortúnios, de opressão e atacam em três pontos fulcrais: totalizam poder assumindo o governo da cidade dos pequeninos, totalizam o conhecimento se apoderando da lâmpada mágica, e castram a inteligência dos oprimidos impedindo que se desenvolvam no processo natural de crescimento e despertem por seus direitos. Nito e Lito surgem como uma reduplicação consagrada do herói-mocinho e seu ajudante (colaborador, fiel escudeiro). O grande Rei e seu bando são a multiplicação do vilão-bárbaro das forças do mal (das trevas, das profundezas da terra); nada há de mais metafísico do que essa velha fórmula-clichê consagrada ao longo da história da literatura. É uma fórmula que se estabelece convincentemente até na literatura religiosa dos chamados livros sagrados. No Éden, por exemplo, temos o confronto dos primeiros seres humanos, segundo a mitologia hebraica, com a tentação da serpente. Adão e Eva eram o elo que separava o bem do mal, ou melhor, o elo do bem mais próximo do mal. Eram puros, inocentes, ignorantes, crianças divinas correndo no mato com as vergonhas de fora, à mostra no melhor estilo naturista. A luta do bondoso e justiceiro Jeová contra o terrível e persuasivo Lúcifer até então havia se dado frontalmente. O que separava deus do diabo era a incompreensível bondade do primeiro e a incrível maldade do segundo. E o que aproximava Adão e Eva do deus hebraico era justamente o que aproximaria do casal a serpente: a pureza, a inocência, a ignorância. No confronto direto bem sabemos que o anjo negro se encontra impotente perante o onipotente anjo branco. Então a audácia e a persuasão do primeiro venceram uma batalha contra a bondade e o conselho do segundo. A serpente fez o casal donzelo comer da árvore proibida do conhecimento fazendo-lhes promessas e juras. Ela sabia que comendo da árvore o ser humano passaria a questionar, a refletir sobre sua condição existencial, e por motivos de questionamento e reflexões críticas o anjo de luz já havia sido expulso do reino celestial sob as mais terríveis acusações, acusações típicas de quem para si quer todo poder e conhecimento e não aceita dividi-los de forma alguma. E quem insistir ou se rebelar já sabe, é pena de morte na certa, sem balançar as pestanas. Não deu outra, Adão e Eva se deliciaram exaustivamente no pecado mortal da maçã proibida, e já com conhecimento de discernir o bem e o mal, o certo e o errado sabiam que seriam tratados de forma severa pelo criador. O temor, o medo, talvez o pavor da punição inevitável os levou a se esconder nas folhagens. Não adiantou. Surge o deus contrariado com voz tenebrosa de senhor da justiça, voz pausada e grave como a do Cid Moreira ou de locutor de rádio AM/FM e os questiona: que é isso que fizeste? (Gên. 3.13). De nada adiantou a resposta. O casal foi banido do Jardim do Éden sob pena capital: és pó e ao pó voltarás (Gen. 3:19). Uma vez baixado à terra, e com poder e conhecimento de discernir o bem e o mal, o certo e o errado, o ser humano passa também a optar entre um caminho e outro e a se definir pela opção. São dois caminhos, a compreensão é dual. Esse dualismo metafísico se encontra em geral em toda sorte de literatura religiosa e não-religiosa ao longo da história humana. Vem sendo apenas reinterpretada. Todas as literaturas nacionais se afetam por ele em todas as épocas segundo as determinações materiais das sociedades. Como alguns exemplos, podemos citar: o herói homérico na Grécia, o herói conquistador romano, o herói-rei e o herói cavaleiro do medievo europeu, e mais recentemente, o herói romântico europeu; e aqui no Brasil: o herói-índio-europaico do nosso romantismo, e ainda mais recentemente, os mocinhos dos filmes e novelas. Os aspectos metafísicos e idealistas, o maniqueísmo simplista do dualismo filosófico presente na obra de Malaquias tem servido de núcleo de muitas e muitas espetaculares na história da literatura universal. Isso pode parecer uma fórmula ingênua, mas pode fazer sucesso (ou não), pode vender como água ou apenas servir de capim. Mas tudo bem, o que seria da bovinocultura sem o capim? Afinal, a fórmula estrutural da água potável é bem mais simples do que a do capim. E quem sobrevive sem água potável?
A concepção de herói associada ao bem, à honra, ao mérito, à coragem, à justiça, à força, à perfeição, enfim, de herói bem definido do bem, dos fracos, dos oprimidos, embora tenha sofrido alguns abalos sísmicos significativos na escala “Richter”, continua em voga e com vigor aparentemente vitalício; é uma espécie de receita de bolo da vovozinha que todos conhecem e poucos abrem mão. O público já espera um herói sobregente e disposto a salvar a donzela, as pessoas, a situação, a nação, o mundo das terríveis maldades dos vilões. A mediação desse herói com a causa através de algum elemento simbólico e/ou personalidade orientadora é ocasional, mas não raro. Na peça de Malaquias, a lâmpada é o elemento simbólico, o gênio é a personalidade orientadora, já no texto de gênesis, o elemento simbólico é o fruto proibido da árvore do conhecimento, e a personalidade orientadora é a serpente que consegue libertar o ser humano da ignorância eterna. Observemos que, em essência, a semelhança entre a peça de Malaquias e a fábula bíblica é possível. O Grande Rei se configura na figura do deus-criador proprietário do Jardim do Éden__ pedaço de terra com altíssimo grau de valor na especulação imobiliária no mundo teatrologia dos espíritos (ou teatrismo da consciência); um sonho de lugar semelhante ao lugar dos sonhos de Nito.
Os elementos simbólicos aparecem na literatura universal nas mais variadas formas: cetro, espada, cajado, altar, animal, vegetal, mineral etc. Temos o cetro, representante fálico, e o oráculo dos gregos; o cajado de Moisés e a arca da aliança dos hebreus; a espada scalibur e a távola redonda dos ingleses; o tapete voador e a lâmpada mágica dos árabes; a planta entorpecente que constitui o segredo de Jurema no romance indianista de José de Alencar... As personalidades orientadoras aparecem também nas mais variadas formas: de deuses e de semideuses teomórficos, antropomórficos, zoomórficos ou astromórficos; de homens santos ou comuns; e mesmo de objetos; de entidades invisíveis; e de astros... O gênio Bluu e a lâmpada na condição de personalidade orientadora e elemento simbólico, respectivamente, ocupam um lugar significativo na peça de Malaquias. Sem eles a obra desmoronaria, pois se perderia o sentido e a arma do combate ao mal pelo bem. O autor seria forçado a buscar outros recursos criando outra personalidade orientadora e outro elemento simbólico; ou recriando-os intertextualmente a partir de alguma outra personalidade orientadora e de algum outro elemento simbólico já existentes na literatura universal tal qual ele fez com a lâmpada e o gênio.
As outras personagens, que poderíamos considerar secundárias, funcionam na coadjuvância da composição do enredo. A vovó, os guardiões, os valetes, o vendedor de Relíquias, o irmão do rei... De tal forma que se algum deles for retirado da peça, a peça continua, não desmorona, embora com alguma perda de efeito expressivo. Mesmo Lito, na função de ajudante, colaborador ou fiel escudeiro poderia ser retirado da peça. Seria uma perda considerável, mas apenas parcial. A obra sobreviveria. Essas personagens citadas aqui nesse parágrafo funcionam como os termos acessórios na sintaxe da língua portuguesa com relação aos termos essenciais. Todos são necessários, mas só os essenciais são inevitáveis. Isto, claro, numa concepção tradicional de gramática.
Outro aspecto que se pode observar na obra de Malaquias diz respeito ao título dado pelo autor. É necessário fazer uma sugestão de reordenação de alguns elementos do título, em vez de “O Grande Rei __ o poder, o sonho e a esperança”, seria “Nito: a esperança, o sonho e o poder”. O título dessa maneira contemplaria melhor a tessitura estrutural e o conteúdo da peça. A escolha original feita por Malaquias parece ser motivada por uma questão de efeito de sentido; uma peça com o título de “O Grande Rei” chama bastante a atenção, é mais atraente, desperta mais a curiosidade, e isso interessa ao escritor que quer ser lido. Mas, ao lermos a peça, percebemos que ela orbita em torno das preocupações e inquietações de Nito__ personagem central da obra e protagonista__, que em sonho se confronta com O Grande Rei __ seu antagonista __ face ao problema da falta de alguns direitos para as crianças na sociedade, ou melhor, face ao desrespeito a direitos já estabelecidos legalmente. Ora, sendo assim, obedecendo à relação de título com elementos nucleares de um texto, se percebe que a peça possui dois aspectos curiosos que promovem o diálogo de duas esferas da vida humana: o aspecto do ideal __ representado pelo sonho e por isso também poderia ser chamado de aspecto onírico __ e o aspecto do real __ representado pelas preocupações e inquietações de fundo social de Nito. O texto se configura em um sonho, um sonho de mudar a realidade, uma realidade de muitos. Temos então um diálogo em duas esferas: o sonho individual e a realidade social. O indivíduo e a sociedade em confronto; o primeiro armado com o sonho, o segundo entrincheirado na realidade. Devido a sua natureza tão adversa, o problema do indivíduo com a realidade social não possui solução possível na oposição do sonho com a realidade. Mas tal confrontação serve como estimulante para uma boa reflexão. Malaquias foi muito feliz ao abordar o problema a partir da ótica de uma criança, mostrando e alertando que as crianças também são sensíveis aos problemas causados pelos adultos, e que elas possuem uma maneira fantástica e peculiar de querer resolvê-los. Nisto Malaquias foi mais feliz do que no uso do intertexto com a lâmpada mágica de Aladim, já que tal influência da literatura oriental parece pouco sentida entres as crianças de hoje. Provavelmente o autor se remete ao modelo de sua infância. Mas isso pouco importa; é peso menor. O importante a salientar é que a dialética, embora fluida ou frágil, utilizada pelo escritor, do indivíduo e da sociedade aponta que Nito é a grande figura da peça, a grande personagem, já que ele representa a luta pelas mudanças sociais na realidade e/ou pelas mudanças reais da sociedade. O grande Rei representa os obstáculos, os entraves sociais na realidade e/ou os obstáculos, os entraves reais da sociedade. Nito alimenta a esperança que lhe sustenta o sonho, seu sonho nasce de sua esperança, uma esperança de intervir na sociedade se contrapondo ao poder estabelecido, ou melhor, tomando parte da relação de força existente entre o poder estabelecido por alguns contra a necessidade de mudanças de muitos. O Grande rei representa esse poder estabelecido, esse poder que Nito entre muitos desafia. Por isso justifico a sugestão de mudança do título prescrito pelo autor para “Nito: a esperança, o sonho e o poder”.
Pelo que foi exposto se compreende que a peça de Malaquias se movimenta no ritmo trivial das agias de um córrego; de um córrego essencialmente preservado no tempo e no espaço sofrendo poucas recriações em seu curso. Daí a qualidade da água ser potável. Ele se agarrou a uma fórmula já consagrada e comum. Literariamente, pode não ter acrescentado muito em novidade, mas em nada perdeu. Recriou. E no mundo das letras, nada se perde quando nada se ganha, mas tudo se recria. Afinal, a novidade nem sempre representa um avanço. Por isso, faço questão de concluir essa análise dando um parecer favorável ao esforço do autor, por produzir uma obra como essa num momento como esse, em que o bom senso se tornou tão démodé. Que águas potáveis como essas continuem jorrando... para que a esperança na produção artística não seja um urubu disfarçado de papagaio.
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