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quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

A Concepção Sincrética de Inferno em “A Divina Comédia de Dante Alighieri”

Por Melquezedeque Farias Rosa

            Eu, filho de pais evangélicos xiitas, quando criança, ficava intrigado com os mistérios apresentados pelas leituras bíblicas que fazia, e que faziam para mim. Confesso que essas leituras também me faziam. Meu modo de pensar, naquela fase atravessada de inumeráveis contradições, foi forjado à temperatura da fé judaico-cristã ocidental proferida fervorosamente do púlpito da igreja por senhores e senhoras e jovens que pareciam sangrar em lágrimas em seus testemunhos e orações. Entre todas as intrigas provocadas pelas sagradas palavras, algumas invadiam, pilhavam e pirateavam meu imaginário; dentre elas as idéias de paraíso e inferno eram as que mais chamavam a atenção; elas retiniam em minha cabeça como marteladas em zinco. E é nesse momento que tive a oportunidade mediada por minha mãe de ler pela primeira vez A Divina Comédia” de Dante Alighieri.
Através de Dante percebi que o abacaxi era brabo. Sua obra somou algumas revelações mas multiplicou as intrigas. Os lugares espirituais são como uma moeda de muitas faces e cada qual com seu(s) valor(es) de uso e de troca. E Dante, como um ágil estrategista das letras, em sua época, soube explorar as diferentes maneiras de se conceber esses lugares. O resultado é uma sopa de letrinhas que selecionadas e combinadas revela o pensamento religioso medieval do século XIV. Dante faz um milk-shake de cristianismo com paganismo, de catolicismo com mitologia greco-romana; misturou crença e crendice, o religioso e o supersticioso. Sincretismo.
O inferno em Dante, razão específica desse trabalho, merece um olhar pluriangular; visto que a concepção de inferno apresentado n’A Divina Comédia é constituída pelo efeito simbiótico de seu sincretismo e da coexistência dos valores clássicos com os medievais. É necessário olhar esse inferno pelos ângulos com os quais ele era encarado por uma sociedade que, embora professante da fé católica, ainda não tinha largado, de todo, seus hábitos e valores pagãos, suas crendices mitológicas, suas superstições, e que estavam sendo reavivados pelo insurgente movimento renascentista. Esses valores e hábitos pagãos formavam o substrato de sua cultura, de sua história, de sua socialidade. Ao mesmo passo, Dante se antecipava a mudanças na face do mundo que ainda estavam por vir. Afinal, o renascimento estava acendendo sua tocha na era das trevas.
O período em que Dante viveu foi testemunha ocular do maior dilema por que passou a idade média: a guerra de trincheiras que se deu entre a fé e a razão e que se estenderia pelos próximos séculos até hoje. Por exemplo, há quem compartilhe da opinião de que o conservadorismo eclesiástico, principalmente por parte da igreja católica, é uma trava de mão para o desenvolvimento científico. Em contrapartida, há quem compartilhe da idéia de que o desenvolvimento científico ameaça a formação da moral religiosa. Mas essa é uma outra discussão. É uma particularidade, um aspecto da guerra de trincheiras entre fé e razão.
 Na época de Dante, a reutilização das artes greco-romanas incidia em uma forte ameaça aos valores cristãos católicos sedimentados na Europa. Basta lembrar que o ideal humanista apregoado pelos renascentistas era presumivelmente olhado de soslaio pelos representantes da igreja e por aqueles que defendiam seus dogmas como quem esconde a mão da palmatória. A ressurreição consciente do passado clássico, visto como modelo de civilização, era uma subversão, no sentido em que isso era diametralmente oposto ao que era ensinado pela doutrina católica. O modelo a ser seguido, segundo a igreja, seria o do paraíso, o do mundo celestial, o da habitação divina. Mas esse lugar etéreo para ser alcançado era preciso uma vida conforme os dogmas da igreja, e mais, aos desobedientes, aos pecadores, aos hereges, pesava uma punição severa, de acordo com o peso e medida de suas ações em vida. Essa punição era o fogo do inferno e seus funcionários com seus  garfos, tridentes, objetos cortantes, perfurantes que pareciam ciscadores de folhas caídas. Enfim, na concepção religiosa católica medieval, se refletia na terra o modelo de organização do além-vida. Isso era, de fato, diametralmente oposto ao que era apregoado pelo renascimento, que via no passado dos próprios homens um modelo de civilização a ser buscado. Estava feito o dilema.  
Essas duas visões de mundo são os ingredientes do milk-shake dantiano em sua “A Divina Comédia”. Na simbiose dessas visões, que eu chamo aqui de sincretismo, já que não encontrei termo melhor, Dante apresenta um inferno atravessado por influências cristãs (católicas) e pagãs (mitológicas). Do intercruzamento e do intracruzamento[1] dessas influências Dante reúne em sua obra os valores plurissignificativos de sua época, retratando e conservando através da arte seu tempo e tornando-se provavelmente o maior escritor-poeta italiano da idade média.
Na epopéia de Dante estão reservadas cadeiras para os dois lados que constituem a concepção de inferno nela apresentada. Uma leitura precipitada de “A Divina Comédia” poderia levar à proposição de que Dante Rompe com o dilema instaurado em sua época entre fé e razão. E Assim ele estaria seguindo um caminho conciliador dessas duas perspectivas. No entanto, uma leitura mais cuidadosa, levando em consideração o contexto geral em que a obra se insere, leva a pensar não deve ter sido essa sua preocupação. Ele habilmente mergulhou sua história de amor platônico por Beatriz no mar de coisas que aconteciam a sua volta. Falando assim pode até parecer simplismo, mas não o é. É bom considerar que o segredo dos bons escritores não está apenas no ‘que ele faz’ mas também__ e me arrisco a dizer, fundamentalmente__ no ‘como ele faz’. Dante era um autor que vivia e vivenciava seu tempo. Ele soube ler bem os acontecimentos e fenômenos circunjacentes e tratá-los literariamente.
É importante ainda considerar que Dante não fez através de “A Divina Comédia” um movimento de ruptura com os valores de sua época; uma compreensão assim seria novamente produto de uma leitura precipitada. O bom senso leva o leitor cuidadoso a compreender Dante como um homem de seu tempo, envolvido num dilema de seu tempo, e nesse sentido nem era conciliador nem rompedor de valores. Um homem que, como já foi dito, sabia ler o que acontecia a sua volta e lidar habilmente com isso em sua literatura.
Desta forma, a concepção de inferno apresentada em “A Divina Comédia” por Dante derivava da concepção ou das concepções de mundo que (co)existiam no alvorecer do período renascentista, e tinha(m) suas determinações num contexto mediato, isto é, num contexto constituído pelo histórico, pelo sociológico, pela materialidade, enfim, pelas relações sócio-histórico-materiais do fim do século XIII e começo do século XIV, período em que viveu o escritor-poeta. Seguindo essa acepção, pode-se dizer que a concepção de inferno apresentada em “A Divina Comédia” não é apenas e singularmente de Dante, mas também de seu tempo e sociedade. Reiterando, o inferno de Dante é, assim, o inferno de seu tempo e de sua sociedade.
O mundo de Dante era um mundo em transição. Na verdade todos os mundos são mundos em transição; entendendo transição como um movimento irrefreável de natureza dialética em contraponto direto e indiscreto ao movimento estático de natureza metafísica. Mas mundo de Dante tinha uma peculiaridade, uma marca, uma característica interessante. A transição se dava a partir de uma retomada do passado para a superação do presente. Ironicamente, o retorno indicava um avanço. E nesse sentido, o passado serviria para a reformulação do presente e indicaria os caminhos para o futuro. O problema era que na sociedade de Dante presente e futuro já estavam prefixados pelos dogmas católicos apostólicos romanos judaico-cristãos ocidentais. É esse o mundo de Dante. Um mudo em que as forças transformadoras ecoavam do passado e as conservadoras reagiam do presente. E é no calor desse momento que se aquece o poema épico de Dante; ou seja, é nesse choque de concepções que Dante, embora católico confesso e altivo, produz aquela que se tornaria uma das mais referenciadas obras da literatura universal, aproveitando os elementos constituintes da(s) ideologia(s)[2] de seu tempo.
No processo de facção de sua epopéia, Dante também não foi neutro, imparcial. A influência teológica dele lateja em versos cujo vocabulário é constantemente impregnado de termos, palavras que referenciam a simbologia eclesiástica da idade média. A formação religiosa de Dante antecede as influências das idéias renascentistas, ela foi a base da formação moral dele. Logo, ele puxava por esse seu lado católico apostólico romano de ser tão vigorosamente vigente na sociedade européia de então. Mas isso não o impediu de apresentar em sua poética o barulho dilemático de seu tempo. E é isso que faz dele um grande escritor; o fato de construir uma ficção que mexe até hoje com o imaginário das pessoas e que tem como pano de fundo o fluxo de idéias de seu tempo, de sua sociedade. Ou será o contrário? Ou seja, ele retrata o fluxo de idéias de seu tempo, de sua sociedade através da construção de sua ficção. Bem, isso depende do olhar que se dê. Talvez, ambas as explicações sejam complementares. O mais relevante é que Dante faz isso sem querer ser conciliador, rompedor ou imparcial. Dante não prescreve. Ele não escreve receitas para botecos do futuro. Sua arte em “A Divina Comédia” nem é pau, nem é pedra, nem é o fim do caminho; é água para todos os meses do ano. E sobrevivente ao tempo.
A captura, sem pieguismo, dos valores de uma época é uma tarefa árdua e complexa. E dar um caráter literário a esses valores é uma tarefa ainda mais árdua e complexa. E ir ainda mais adiante e apresentar as concepções e idéias elementares coexistentes nessa época é uma tarefa imensurável em sentido histórico, sociológico, cultural etc. e sobretudo literário. Dante fez exatamente isso ao tematizar literariamente sobre as idéias de inferno, purgatório e paraíso, levando em conta não apenas a concepção cristã, católica dominante naquele momento mas também a concepção pagã, mitológica da herança greco-romana clássica.
A concepção de inferno, de purgatório e de paraíso não se encontra em Dante apenas nos livros que recebe esses temas como títulos, pelo contrário, está no conjunto da obra. E tratando-se do maniqueísmo metafísico religioso, é possível postular que a afirmação de X é inversamente o valor de Y, e vice-versa, e entre um e outro há infinitas mediações. Trazendo a claro, quando Dante guiado por Virgílio passa pelo inferno e o descreve, sua descrição ao lado de Virgílio revela as pedras que servem de calço para a concepção de inferno apresentada. Que pedras são essas? O cristianismo católico e a mitologia grega. Presumivelmente, esses dois elementos constituirão a concepção de purgatório e de paraíso constante nos outros dois livros.
O leitor pode ainda não ter entendido a equação postulada acima. Pois bem, a inversão do valor de Y pela a afirmação de X acontece porque esse X inversamente pressupõe Y, e Y inversamente pressupõe X. Se se concebe que no universo há uma luta irrefreável entre o bem e o mal, isto é, entre elementos opostos em sua natureza, a descrição do bem vai ser o inverso da descrição do mal, e entre um e outro haverá infinitas mediações. Por exemplo, assim como entre o homem e Deus está o Diabo, entre o céu e a terra está o inferno, e entre o inferno e o céu está o purgatório. E como num jogo de espelhos côncavos e convexos, assim como um se oculta no outro, um se revela no outro.
Dando ainda mais detalhe aos dois parágrafos anteriores, a idéia de paraíso enquanto lugar espiritual, ou morada de Deus(es) situado nas alturas, no céu, no olimpo pressupõe que o inferno enquanto lugar espiritual esteja no interior da terra, nas profundezas da terra, e vice-versa. Isso devido à natureza de cada um desses lugares. O lugar do bem só deve ser em nível acima do lugar do mal, e vice-versa. A natureza inversa de ambos os lugares permite a compreensão da equação. Se um representa o bem pressupõe que outro seja o mal, se um é um lugar alto pressupõe que o outro seja baixo etc.
Na obra de Dante, Beatriz ao ver seu amado em perigo aqui na terra, desce do céu, vai até o limbo pedir a Virgílio que o ajude. Mais adiante, Virgílio propõe a Dante uma viagem pelo interior da terra, e é assim que Dante começa sua jornada pelo mundo subterrâneo do inferno, passando pelo purgatório e finalizando no paraíso. Nessa longa jornada aparecem elementos da mitologia grega, do mundo greco-romano e elementos do cristianismo católico tais como monstros e pessoas. Os diálogos misturam o clássico e o medieval. As próprias descrições de Dante enquanto personagem-protagonista, embora predominantemente teológicas, são impregnadas de elementos da cultura clássica. E até mesmo as falações das outras personagens são carregadas de elementos das duas perspectivas.
O conjunto da obra aponta que Dante sabia o que estava escrevendo e o que vislumbrava. Seu trabalho de tessitura dos versos, dos temas, do ritmo e da rima faz com que a obra tanto possa ser compreendida pela sua totalidade como por cada uma de suas partes; visto que cada parte pode servir como metáfrase[3] uma da outra, embora a primeira opção, a de compreender pela totalidade, seja a mais prudente.
Finalizando, a concepção de inferno apresentada em “A Divina Comédia” por Dante tem seus traços delineados não apenas no primeiro livro, mas em toda obra. E em toda obra o inferno é concebido numa perspectiva teológica e mitológica, embora a primeira predomine provavelmente devido à formação moral religiosa do autor e das determinações sociomateriais e históricas do período. Mas essa predominância não anula o caráter híbrido de influências em que concepção de inferno em Dante se apóia, rotulada aqui como sincrética justamente porque mistura pelo menos duas perspectivas bem diferentes: a teológica e a mitológica.






*Observação: esse texto foi apresentado como atividade de expressão escrita de literatura na aula da Professora Gláucia Machado da FALE-UFAL (Faculdade de Letras da Universidade Federal de Alagoas). E teve como razão: um tributo aos colegas de sala.



[1] Intercruzamento e intracruzamento porque o cruzamento das influências teológicas e mitológicas na concepção de inferno em “A Divina Comédia” não ocorre apenas pela aproximação externa entre as duas concepções de mundo, mas também pela aproximação interna. A relação das duas perspectivas é por dentro e por fora. É, portanto, uma relação imbricada, interseccionada. Se misturam e se separam. Formam uma dualidade que convivem encarnada no mesmo corpo. E assim Dante reproduz na obra os tapas e beijos que se sucediam entre o cristianismo católico e a herança pagã greco-romana na realidade de seu tempo e sociedade. Ele faz isso deixando de lado apenas a violência dos tapas  e os estalos dos beijos. 
[2] O termo ideologia aqui está sendo usada como conjunto de idéias pertinentes a uma determinada classe, época ou concepção filosófica. 
[3] Esse termo, metáfrase, foi usado por analogia a paráfrase e metalinguagem. Com o sentido de que uma parte explica a outra, mas sem necessariamente pelo seu verso, mas pelo seu inverso. Portanto não é uma paráfrase, nem tampouco uma explicação no sentido aferido ao que seria uma metalinguagem propriamente. É uma explicação baseada em pressuposição seguindo a equação postulada. Nas três partes da obra a elementos que ocorrem recursivamente que permite tal pressuposição a partir daquilo preconcebido no mundo exterior, visto que os temas são conhecidos do leitor.    




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