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quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Fábrica de homens

Por Melquezedeque Farias Rosa

_Não! Você não serve para o serviço. Passe no setor de recursos humanos e se acerte com o contador. Você tem oito ou dez minutos antes que ele saia. “Próximo, venha o próximo”. Gritou a chefe de serviço de dentro de seu escritório improvisado em um galpão, que servia de refeitório nos dias úteis, nos fundos da empresa de encaixotamento de peixes salgados do distrito industrial de Maceió.

Zequinha, como ficou batizado pelos companheiros de trabalho, ainda quis apelar e até ensaiou uma sopro de fala erguendo levemente a mão na intenção de um pedido de justificativa. Mas em seu gesto esmoreceu a meio caminho envolvido numa sensação de escravo que recebera uma liberdade forçada, uma alforria, sem carta, acompanhada da necessidade de ser preso; uma necessidade odiada de coração mas que vinha lá do sentimento mais profundo e depurado do estômago. Sentimento onde se encontra a raiz primitiva da consciência humana.
Dobrou-se à saída mas não antes de dar um ultimo olhar bandeado  para aquela burocrata que uma semana antes havia exigido dele mais de quatro horas de espera e mais duas horas ou mais em testes físicos, psicotécnicos e entrevistas por um emprego de salgar e encaixotar peixes. Ainda fedendo a escamas e salmouras e todo ardido de sal grosso e fino retirou-se numa mistura mascada de rancor, impotência e tristeza. Passou pelos outros da fila que pareciam atravessar-lhe com olhares de lança afiada, olhares que continuariam lhe flechando as costas à medida que se afastava por entre as mangueiras que separavam o refeitório do setor de recursos humanos. Aqueles olhares que também deixavam transparecer na sua fundura a razão marginal dos esquecidos, dos ignorados, dos desvalidos e uma fagulha de esperança pela sobrevivência, mesmo que em condições nada próprias para o resto de dignidade que se lhes fugia a cada porção de peixes salgada e encaixotada.
A medida que foi passando pela fila ainda ouviu alguns comentários que se distinguiam entre eles. Ouviu o Rogério dizer “Toma! Eu não te disse para ser mais rápido carregando as caixas! A Rita disse “Tem nada não, mô fi, as coisa s’arranja”. A Dudé disse “E aeh, explicadinho, pra que serve seus estudo agora, hein. Você num sabe tudo, porque num soube segurar o emprego?” A Ciça disse “Ligue pra ele não, ele tem é inveja de você”. Ouviu ainda mais alguns e diversos comentários mas deu pouco ouvido como que estivesse descentrado do mundo imediato. Sentia-se um projeto de fracasso personificado; Um catador de migalhas de mendigo. E entre os comentários ouvidos, os bons foram os que mais o feriram por denunciarem com cortante honestidade sua inutilidade enquanto gente. “Sou um incapaz, um inepto, um fracote”, pensava ele lembrando de sua condição física desprovida de força e preparo para o tipo de trabalho do qual acabara de ser dispensado. Aquilo mexia com sua condição de homem, que nas palavras de seus pai tinha a ver com força, coragem e disposição para o serviço, seja ele qual for.
Mas ao chegar embaixo da segunda mangueira, já se conformando com o acontecido lembrou que tinha feito o melhor de si para provar-se perante as exigências feitas naquele ambiente. Lembrou que não fez corpo mole ao entrar na câmara fria para buscar os peixes que lá estavam congelados e levá-los para as esteiras de salgamento onde mulheres ligeiras como que assustadas com facas afiadas à mão lapidavam cada posta como se fossem brilhantes diamantes e garimpavam ovas das vísceras como se aquelas fossem belas pepitas de ouro. E quando, por exigência, juntamente com as mulheres, estripava, desovava e salgava peixe num ritmo automático levado pelo movimento da esteira elétrica que não parava de levar a outras secções da linha de produção as preciosidades ali cuidadas.
Nesses momentos de ação contínua, de estripação, de desovação, de salgação, todos atendiam, controlando até as pestanejadas, às orientações da esteira como se essas lhes chefiassem a um férreo silencio. Eram todos extensões orgânicas de uma máquina voraz, de uma peça de metal engrenada por um motor indisposto a uma pausa, a um fio de prosa, a uma simples troca de olhar. Parecia controlar até as puxadas de fôlego. Se metia no corpo de cada um; nos rins retinha a produção de urina; nas tripas, a de fezes; na boca se materializava em saliva que segurava a sede; na cabeça era dormência, esquecimento das horas,  espantalho dos pensamentos mais simples; no coração sedava a angústia que se acumulava para o final da jornada.
Tudo ali se condensava naquela esteira. Ela era como o corpo de um polvo mecânico cujos tentáculos se espalhavam para todos os lados; para lá e para cá. A câmara fria era o tentáculo que congelava os ânimos durante retirada dos peixes, ainda frescos e tesos como madeiras secas, com o auxílio de uma pá que parecia ranger os dentes a cada cavada no gelo escama. Mesmo as botas brancas de borracha pareciam lamuriar-se com a utilidade que lhe fora dada e se agarravam aos pés do cavador como que querendo fugir-se do contato hostil do piso. O homem que operava naquela geleira, apresentando sinais claros de uma patologia pulmonar, e por isso contava freqüentemente com a solidariedade de alguns carregadores que lhe faziam o ofício para presevar-lhe a saúde. Mas também contava com má fé daqueles que queriam surrupiar-lhe o cargo. Acabou mandado embora por justa causa antes daquela semana se encerrar acusado de ter mentido sobre seu estado de saúde para entrar no emprego. Isto o levou a despejar cinco anos de indignação guardada, e com a mesma pá com a qual acariciava o gelo que o adoecera, arrebentou tudo que via pela frente até ser contido a cacetadas pelos capachos da empresa.
Os caixotes uma vez empurrados pela força braçal dos homens logo os automatizavam e assumiam o controle do movimento que por sua vez se sincronizava com o movimento da esteira sendo elos de seus tentáculos. E assim arrastavam os homens até os carrinhos de transporte de onde o fenômeno continuava.
Os caixotes e os carrinhos de transporte operavam os homens com uma habilidade invejável e respeitável; levavam-nos à esteira elétrica munidos por forças próprias dos desejos maquinais da indústria, e com todo cuidado punham o interesse pelos peixes na mesma proporção do desinteresse pelos homens. Afinal, se os homens eram dispensáveis por justa-causa, os peixes só o eram por  causa-justa: o lucro, a acumulação, a produção e reprodução de capital.
E refletindo todas essas coisas, Zequinha já acomodado sobre o lombo de uma raiz negra e amarelada da mangueira, exposta como uma fratura da terra, se desculpava consigo próprio. Se indagava: “Não teria a peste da burocrata-chefe me libertado do controle tentacular da esteira?” “Ou não teria a esteira ordenado a ela a minha dispensa por julgar-me em desafino e em descompasso com seu som e ritmo?”  “Talvez os peixes tenham me denunciado com seu olhar morto fingindo-se.” “Não importa a resposta, eu não vou sair quebrando coisa alguma, agora que descubro uma estranha sensação de liberdade na infelicidade de uma rejeição.”
Esse devaneio é interrompido com a saída cautelosa do contador. Zequinha ainda pensa em abordá-lo, mas desiste logo em seguida. Acaba se amparando na árvore, se mimetizando com ela para não ser percebido; e em seguida, sai sorrateiramente continuando suas reflexões... Centrando atenção no carregamento dos caixotes já prontos para os caminhões que os transportaria para um armazém provavelmente no Jaraguá, bairro do porto de onde seriam embarcados para alguma parte do mundo...
E Zequinha não voltou para receber seus ganhos? Pode estar se perguntando o leitor. Bem, é óbvio que sim. Quem planta quer pelo menos um pouco da colheita. Mas o seu maior ganho foi descobrir que a indústria tinha lhe fabricado de velho garoto recém portador de carteira reservista em homem novo feito de história que faz história... Isto sem se abandonar, sem se romper estanquemente... E assim, o novo nasceu do velho e o velho continuou no novo... 

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