Por Melquezedeque Farias Rosa
Acordo disposto e feliz
Acordo disposto e feliz
Mesmo com o estômago brocando o mato da fome e a esperança com cara de aborto provocado
Lavo o rosto alegremente com lágrimas dos meus próprios olhos
Me enxugo livremente com o ar calafriento que perpassa minhas macérrimas costelas
Procuro nas cavidades do ouvido e do nariz restos de comida que sobrou de ontem
Satisfeito, me armo com a falta de opção e me preparo para mais uma cruenta batalha
Contrariando as leis da Física, uso o vento como força motriz que equilibrará os meus passos cambaleantes
Vou em busca da maldade protagonizada por minha própria espécie
Munido de inconsciência e coragem, provoco um assalto nos olhares daqueles que comigo se incomodam
Sento à calçada e sinto seu peso pressionando minha bunda descarnada
Negocio com aqueles que querem pagar mais para que eu vá embora
Nesse leilão percebo toda minha desimportância
Meus dedos pontiagudos com unhas encaracoladas são alvos de freqüentes observações
Meu odor me faz vítima de todos os abusos contra meus direitos humanos
Já é tarde, e tudo que tenho já dá pra comprar um lugar na fila da porta dos fundos de um restaurante popular da periferia
De repente um milagre se perde e outra realidade aparece
Uma fila imensa de pessoas com bandeiras vermelhas e instrumentos de roça na mão passa pela estrada
Me esforço contra minha própria falta de força e me ergo como um herói baleado
Acompanho aquela gente que já me chama de companheiro
É uma possibilidade de fazer as pazes com a esperança e construir uma nova vida
Dias e dias de caminhada e finalmente resolvemos acampar à beira da estrada
Os motoristas, infringindo as leis de trânsito, passam hostilmente veloz e velozmente hostil
À noite tenho um pesadelo que estou sendo banqueteado pelo restante do grupo
Desperto desesperadamente tentando juntar as partes de mim mesmo
Vou me tranqüilizando aos poucos, mas, jurando sentir certo aroma de antropofagia no ar, fico a noite em claro
Na manhã seguinte, a morte visita o barraco vizinho e leva para o seu desjejum uma criança recém nascida
O velório é animado com a participação frívola e brutal de velhos conhecidos
A polícia se ordena sobre a multidão alvoroçada com seus cassetetes afiados
O comandante da tropa empolgado se comporta como se estivesse em uma missão patriótica
Os trabalhadores conseguem finalmente organizar uma barricada com seus próprios corpos
Eles tentam proteger dos defensores da sociedade privada tudo que lhes resta: suas crianças verminosas e suas mulheres enfeiadas pelas circunstâncias
Acocorado, bem na diagonal dos acontecimentos eu me posiciono tentando registrar tudo
Seria o primeiro, o último, o único texto da epopéia em que se traduziu minha existência
De repente o choque
Uma nuvem de poeira impura paira
Sons ferramentosos tinem e retinem
Ouvem-se tiros
...
Um lago vermelho sujo surge
...................................?
...................................!
É tarde
...
Sinto agora a dor da revolução proletária minguar do meu corpo e se plasmar à tinta de minha caneta
Em últimas reflexões concluo que não dá mais para recuperar:
o tempo,
a fé,
e a vida...
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